Paulo Victor Gomes: PEC 37, a falsa polêmica

Estudante goiano diz que discussão da PEC 37 girou em torno de polêmica que não se sustenta: a do poder de investigação do Ministério Público. Para ele, emenda trazia diversos avanços, e guerra institucional entre MP e PF prevaleceu sobre interesses do povo.

Por Paulo Victor Gomes*


“(…) ao reverberar a rejeição pela PEC 37, o movimento das ruas se deixou apropriar por um dos lados do conflito corporativo, talvez sem se dar conta. Deixou-se de cobrar o que realmente importa na investigação criminal: a segurança jurídica, o respeito pelos direitos do investigado, o fim da violência policial e o fim de disputas corporativistas que diminuem o Estado. A investigação criminal controlada, balizada por princípios que preservam a dignidade humana e a presunção de inocência, é o que falta no Brasil e pode ser perfeitamente realizada pelo Ministério Público ou por uma polícia tecnicamente preparada e respeitosa à cidadania, tanto faz. A disputa intercorporativa é que está no lugar errado e atrapalha o jurisdicionado e a sociedade. E esta só se resolve com o fim das disparidades remuneratórias e de vantagens no serviço público e não com a transferência de uma competência estatal para um ou outro órgão.”

Eugênio José Guilherme de Aragão (corregedor-geral do Ministério Público Federal) http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/derrota-da-pec-37-a-apropriacao-corporativa-das-manifestacoes-de-rua-no-brasil/
 

O Título V da Constituição Federal (CF) de 1988 trata “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”. Em seu Capítulo 3, o tema em questão é o da Segurança Pública. É aí, e não em outros trechos da Carta Magna (como irei deixar claro mais à frente), que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 37 apresentada no ano de 2006 propunha alterações.

A primeira diferença que se percebe entre o texto vigente atualmente e aquele que se pretendia passar a fazer valer com a PEC 37 é uma alteração no caput do Art. 144, o único a tratar do tema da Segurança Pública na CF. Acrescia-se a este dispositivo um trecho que dizia que a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio seria necessária “para a garantia do Estado Democrático de Direito, para a preservação da dignidade da pessoa humana, para o exercício e garantia dos direitos e deveres individuais e coletivos e a proteção dos direitos humanos.”

Logo em seguida, enumeravam-se alguns princípios norteadores da política nacional de segurança pública, que seguem a linha dos conceitos expressos na nova redação do caput citada acima. A meu ver, esta medida procurava preencher uma lacuna deixada pela Carta Magna, ao estabelecer a importância da segurança pública sem definir tal conceito. Além disso, inseria na lei máxima da República a questão da defesa dos direitos humanos.

A segunda alteração proposta pela PEC seria o aperfeiçoamento do aparato estatal de segurança pública. Isso, através da criação do Gabinete de Polícia Federal, com status de Ministério, composto por “uma secretaria de polícia judiciária federal, um departamento de polícia rodoviária federal, um departamento de polícia ferroviária federal, um departamento de polícia marítima, aeroviária e de fronteiras federal e uma secretaria nacional antidrogas”, mantendo como está a forma de organização das Polícias Civil e Militar e dos Bombeiros Militares. Além disso, a área de atuação da PF seria aumentada para os crimes contra os direitos humanos e a biopirataria dentre outros temas específicos que têm aparecido na sociedade contemporânea.

O status de ministério garantiria ao chefe do Gabinete de Polícia Federal o título de Ministro-Chefe, além de possibilitar à PF a elaboração de sua própria peça orçamentária, bem como, posteriormente à aprovação da mesma na Lei Orçamentária Anual da União, sua execução. Isso significaria garantir à Polícia Judiciária da União, a mesma autonomia financeira que já possui, por exemplo, o Ministério Público.

O texto do Art. 144-A, que a PEC propunha acrescer à Carta Magna, diga-se de passagem, foi inspirado (quase que copiado) no texto dos Art. 127 e 128 da Constituição, que tratam da forma de organização do Ministério Público. A despeito dos temas que surgiram no debate em torno deste tema, o que se procurava, claramente, era o fortalecimento da Polícia Federal, que tem se mostrado ao longo dos últimos anos, a mais eficiente ferramenta do Estado na manutenção da ordem democrática.

Outro grande avanço seria o previsto no Art. 144-J, proposto pela PEC 37. Com esse dispositivo, se criaria o Sistema Integrado de Informações, que reuniria as informações relativas à segurança pública dos Municípios, Estados e da União, em um único banco de dados eletrônico. Seria garantida, ainda, a publicação de alguns dados como o número de vítimas de violência policial, dentre outros, no Diário Oficial da União.

Mais um avanço sem precedentes seria o controle externo da atividade policial, através da criação do Conselho Nacional da Polícia Federal, criado pelo Art. 144-K. Este órgão seria muito semelhante ao Conselho Nacional do Ministério Público, e teria, inclusive, a participação de um representante do MP, além de dois advogados indicados pela OAB e dois cidadãos indicados pelo Congresso Nacional, e diversos outros membros.
Com tantos avanços, de onde teria vindo tanta polêmica? Por que o Ministério Público (MP), os grandes veículos de comunicação e parte da sociedade civil organizada se posicionaram contra a PEC? A resposta me parece ser encontrada em uma falsa polêmica: o poder investigatório do MP.

Foi defendida ardorosamente a rejeição integral de um projeto denso (de 10 páginas excluindo-se a justificativa), com base na divergência sobre um único ponto, de apenas três linhas: o inciso VI do parágrafo 3º do Art. 144-A, que tratava de uma das funções que seriam atribuídas ao Gabinete de Polícia Federal. Segue ipsis litteris:

“Art. 144-A (…)
§ 3º (…)
VI – exercer, privativamente, as funções de polícia judiciária e investigação criminal no âmbito da persecução penal internacional, quando envolver bens, serviços e interesses da União.”

Por que falo em falsa polêmica? O que esteve em discussão, inclusive atribuindo-se à PEC 37 à injusta alcunha de “PEC da impunidade”, foi o fato de, em tese, se retirar do Ministério Público o poder de investigar os crimes contra o patrimônio público, no momento em que fosse estabelecido que essa função fosse privativa da Polícia Federal. Ora, em primeiro lugar, essa função de agência investigadora nunca foi do MP; e, em segundo lugar, o papel de vigilância sobre o poder público não estaria em momento algum ameaçado pelas alterações propostas!

O Art. 129 da CF de 1988 enumera claramente as funções do Ministério Público. Em seu inciso VIII fica claro que é tarefa do MP “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”. O inciso seguinte diz ainda que qualquer outra função que seja compatível com sua finalidade é função do MP. Se no Art. 127 da Constituição ficou estabelecido que a finalidade do MP é a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais e sociais”, qualquer ação que esteja normatizada como tal passa a ser sua tarefa. O que não podemos é flexibilizar o texto constitucional ou interpretá-lo ao vento de nossos interesses.

O Art. 129 não deixa dúvidas: o MP deve requisitar diligências investigatórias e requisitar a instauração de inquéritos policiais. Nunca foi sua função, e a rejeição da PEC 37 não mudou isso, realizar as diligências ou a abertura dos inquéritos. Nunca foi e não deve ser função de outro órgão que não as polícias judiciárias, a realização de escutas telefônicas e outras medidas nas quais o MP tem se aventurado para além de seus limites legais.

Se o argumento é do combate à impunidade, que se promovam as ações penais públicas, como se mantém garantido pelo Art. 129 da Constituição (no qual a PEC 37 não propunha que se alterasse uma linha sequer). A promoção de inquérito civil e de ação civil pública também não estava em discussão, são funções do Ministério Público e continuariam a sê-lo. As ferramentas para o combate à corrupção e à impunidade permaneciam asseguradas. O fundamental é que se assegure também o fortalecimento institucional da Polícia Federal. O espírito deve ser de cooperação, não de competição por status ou por competências legais.

Se o que se quisesse fosse eliminar da PEC essa polêmica (que, repito, é falsa), bastaria que algum parlamentar apresentasse uma emenda supressiva ao Inciso VI, do parágrafo 3º do Art. 144-A. Eliminar-se-ia, assim, o dispositivo que gerou a polêmica, mantendo todo o conjunto de avanços presentes nos demais dispositivos. Mas não. A proposta defendida, e recentemente aceita pelo Congresso Nacional, foi a rejeição integral da Proposta de Emenda Constitucional. Não há outra conclusão razoável senão a de que o objetivo é evitar o fortalecimento da Polícia Federal. Em nome de quê? De uma guerra institucional entre MP e PF? Isso sim é o incentivo à impunidade.

*Paulo Victor Gomes é acadêmico de Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás (UFG).