Entrevista – André Singer: O porta-voz e o lulismo

Cientista político, jornalista e professor da USP, ex-porta voz de Lula no Palácio do Planalto foca pesquisa no fenômeno político que nasceu com a chegada do PT ao governo, dez anos atrás. Período, diz, de um "reformismo fraco". Leia a seguir a íntegra da entrevista publicada no jornal O Povo desta segunda-feira (15).

André Singer viveu o poder por dentro, ao acompanhar diariamente a rotina do presidente da República como porta-voz de Luiz Inácio Lula da Silva, nos primeiros quatro anos de governo do petista. Diz que a experiência lhe foi de grande valia pessoal e profissional, mas dá indicações de que dificilmente a repetiria.

Longe de Brasília, do governo e do poder, retomou as atividades como professor e pesquisador da prestigiada USP. O “lulismo”, termo que cunhou, transformou-se num dos objetos de estudo, dentro de um esforço de compreender o que aconteceu no Brasil nos últimos dez anos, com o PT no governo do País.

A conversa com aconteceu no último dia 2 em Fortaleza, onde ele estivera no dia anterior para lançar seu novo livro, ainda em meio à onda de manifestações nas ruas que Singer admite precisar ainda de mais um tempo para entender motivações, objetivos e perspectiva.

Após tantas manifestações e protestos nas ruas, o que é possível apresentar como compreensão do que acontece hoje no País?

A primeira coisa é que nós estamos em face de um conjunto de movimentos e não de um movimento só. Qualquer tentativa de entender o que acontece como apenas um movimento, que seria o primeiro impulso de qualquer analista, vai dar com os burros n’água. Na verdade, estamos diante de vários movimentos, em alguma medida, inclusive, com sentidos opostos. Não é possível interpretar o que está acontecendo a partir de um eixo único. O que aconteceu é que a partir de uma reivindicação delimitada, em torno da redução dos preços nos transportes públicos, acabou aparecendo um conjunto de demandas onde a única coisa que unifica tudo isso parece ser um desejo forte de manifestação, de ir pra rua pressionar.

Na primeira fase do processo, nas primeiras semanas, a situação parecia mais confusa. Hoje, no entanto, se vê manifestações menores, com menos gente, mas em cima de pautas mais definidas.

Na verdade, com essa fragmentação você tem uma multiplicação até maior das demandas. Diferentes entre elas, há demandas corporativas, demandas específicas de movimentos que têm interesses delimitados, mas é tudo diferente. Eu diria que existe uma aspiração que perpassa, não digo todos, mas uma parte considerável desses movimentos, que objetiva exigir melhores serviços públicos. Por exemplo, nas áreas de saúde, educação, segurança e transportes. Esse elemento comum, eu diria, fala pela maioria dos movimentos, mas não consegue falar por todos. Há, nesse momento, uma pluralidade de objetivos que faz com que a gente ainda tenha que esperar mais algum tempo para ver o que vai predominar.

A onda de protestos e manifestações se espalhando pelas cidades é positiva em que aspectos? Por outro lado, deve nos preocupar em qual medida?

Acho positivo, na medida em que indica um aumento do teor de politização da sociedade brasileira. Ou seja, o Brasil tem a ganhar quando se mobiliza mais, a política, no geral dos países democráticos, tende a ficar descolada dos anseios da sociedade. Trata-se de uma tendência geral, então, quanto mais a sociedade estiver mobilizada melhor para o País. Este é o lado positivo, mas, por outro lado, devem ser motivo de apreensão os episódios de violência. A violência não ajuda a democracia, cuja característica principal é a possibilidade de processamento pacífico dos conflitos.

O vandalismo é uma situação à parte dentro das manifestações, resultando da ação de oportunistas, ou também apresenta um componente político?

Eu tendo a achar que seja algo à parte, que se aproveita das manifestações com outros objetivos. Acredito que 99 por cento dos que foram às ruas não querem violência, tenho visto, repetidas vezes, uma posição da maioria contrária a isso. No entanto, acho, não posso afirmar categoricamente, que é muito fragmentada e diversificada também a fonte dessa violência. Há indivíduos de diferentes tipos agindo para provocar esse tipo de confrontação, algo que realmente não ajuda.

Há, ainda, o aspecto da violência que é protagonizada pelo despreparo das forças policiais, não é? A violência do Estado.

Sim, infelizmente. Não sou especialista nesse assunto de segurança pública, mas é nítido que as polícias militares, de alguns estados, pelo menos, se habituaram a um procedimento, um padrão, muito truculento. E, em certas situações, como foi o caso de São Paulo no dia 13 de junho, que pude acompanhar porque estava na cidade, deu-se um tipo de ação completamente desmedida.

O fato de o povo estar hoje nas ruas manifestando-se, protestando contra o quadro no serviço público, significa algum sinal de fracasso do projeto de poder do PT?

Não diria que seja final de fracasso. É, em parte, até, o resultado do processo de melhora das condições de vida da população. Tudo isso é hipótese, volto a dizer, mas penso que os protestos podem resultar dessa melhora nas condições de vida do brasileiro, que passou a ter mais condições de reivindicações. Para você ir à rua protestar precisa ter um patamar mínimo, algo pouco possível, por exemplo, para quem vive em condição de miséria. Neste caso falta acesso às redes sociais e, muitas vezes, a condição de carência é tal que sequer energia se tem para ir às ruas. Claro que os movimentos têm a participação da classe média tradicional, mas acredito que estão sendo puxados também setores que melhoraram de condição de vida, sobretudo jovens, nos últimos dez anos. Em parte, então, o que acontece é resultado do que venho chamando de lulismo. Não considero que corresponda a um fracasso, mas acho que corresponde a um momento de grande desafio para este lulismo. Essa explosão de protestos, como disse antes, apresenta uma demanda que parece ser majoritária, que é a melhoria dos serviços públicos, o que implica em investimentos gigantescos. Não se consegue criar um sistema público de saúde de qualidade, educação de qualidade, com poucos recursos.

O Brasil tinha conquistado, ou reconquistado, uma boa imagem internacional importante nos últimos anos, fato também responsável pelo País ser escolhido para sediar dois dos eventos mais disputados do mundo, a Copa e as Olimpíadas. A situação recente, com as manifestações nas ruas acompanhadas pela mídia mundial, que aqui esteve para cobertura da Copa das Confederações, pode trazer algum tipo de prejuízo, sob esse ponto de vista?

Pois é, nesse aspecto sou otimista. Vejo com bons olhos tudo isso. A gente precisa saber, primeiro, porque é que vamos ter mais, ou menos, respeito internacional. É bom para o Brasil, e justo, que ele tenha mais respeito internacional na medida em que está combatendo a pobreza e, este é um mérito do lulismo, o País tem feito isso. O Brasil, você sabe, até recentemente era o país mais desigual do mundo e hoje está entre os dez mais. Melhorou? Melhorou, mas continua sendo um país muito desigual. Então, o bom para o Brasil é que haja um reconhecimento internacional ao fato de nós estabelecermos como prioridade nacional o combate à pobreza, que, acho, é o grande problema brasileiro. No entanto, a gente sabe que isso está sendo feito de uma maneira lenta, o que chamo de reformismo fraco. Reformismo fraco caminha na direção da redução da pobreza, e da própria desigualdade, mas o faz a passos lentos.

Por uma opção política?

Por uma opção política, sim, que é central no lulismo. Isso significa que ainda há muita desigualdade e ainda existem problemas que são agudos, sobretudo nas grandes metrópoles. Problemas de mobilidade urbana, segurança, saúde, educação, dentre outros. Isso é que explodiu e, entendo, de uma maneira interessante, com as pessoas exigindo o mesmo padrão imposto pela Fifa para os estádios de futebol, os jogos da Copa, nos nossos serviços públicos do dia-a-dia. Não acho isso ruim para a imagem internacional do Brasil, acho que é interessante.

Há semelhança entre o movimento no Brasil e aquele observado em outras partes do mundo, como a “Primavera Árabe”, “Indignados na Espanha”, “Ocupa Wall Street” e outros mais?

Concordo que existe um processo internacional, mas, quando começo a olhar para os diversos casos encontro mais diferenças do que semelhanças. Por exemplo, toda a questão da Primavera Árabe diz respeito a um processo que no Brasil está resolvido, que é a democracia. Não temos um governo autoritário, não temos um autoritarismo vigente. Então, assemelhar as duas coisas não parece muito possível. Talvez em relação ao que acontece agora na Turquia seja possível encontrar alguma relação porque lá a crise surge como um problema urbano. Não conheço suficientemente bem a situação, mas, pelo que me parece, também lá acaba surgindo um problema de concentração de poderes por parte do governo central, questão que também não está posta no Brasil. Não vi nessas manifestações ninguém acusando o governo federal de concentrar poderes ou de apresentar qualquer viés autoritário. O que existe de comum, acho, é o elemento de organização por redes sociais, um fenômeno novo que acho interessante porque se liga com outra questão comum, que diz respeito a um certo questionamento à forma como está funcionando a democracia. Ou seja, no mundo todo, há uma certa descrença e uma certa animosidade justificável com o funcionamento dos partidos, do sistema eleitoral….

No caso brasileiro, as manifestações acontecem num ambiente econômico que não é de crise configurada, com o nível de emprego ainda em alta etc, apesar de alguns sinais iniciais preocupantes. Na hipótese de a economia começar a apresentar problemas maiores, qual o risco a mais que se poderia enfrentar, especialmente no tocante à violência?

Desconfio que, de alguma maneira, esses movimentos respondem a essa situação de uma economia que agora tem crescido pouco.

Já seria efeito de sinais de uma desaceleração econômica?

Tenho essa desconfiança. Pelo seguinte: como os problemas brasileiros são muito graves, ainda, a despeito das melhores que ocorreram nos últimos dez anos, quando a economia cresce a uma taxa de cinco, seis por cento ao ano, cria-se uma sensação de que as coisas vão melhorar. Ao jovem, que vai entrar no mercado de trabalho, parece que há mais condições de subir, ganhar mais, de ter uma perspectiva melhor. Quando, porém, a economia cresce pouco, a sensação diminui e as pessoas começam a ficar preocupadas. O emprego está diminuindo um pouco nos últimos dias, não há nada grave, mas a oferta diminuiu, o que parece natural em face de um crescimento baixo. Também, quando há problemas na área da desindustrialização a qualidade dos empregos piora e, acho, tudo isso vai contribuindo para uma sensação de que a perspectiva não é boa. A verdade é que estamos entrando no terceiro ano em que não se desenha uma retomada mais forte do crescimento e, pior, mesmo para o próximo ano, quando teremos a Copa, teremos as eleições, quando normalmente há uma reativação do chamado ciclo de negócios, não existe nada apontado nesse sentido. É nesse ponto que está colocado, para mim, o perigo principal.

Por falar em ano eleitoral, já foi divulgada a primeira pesquisa sobre intenções de voto com os prováveis efeitos das manifestações. A presidente Dilma, que seria candidata à reeleição, perde pontos importantes, na aprovação popular e na intenção de votos, e o ex-presidente Lula ganha força como alternativa do PT mantendo-se como o nome mais forte do partido, apesar de também afetado pelos protestos.

A primeira coisa é que a gente precisa aguardar. Na verdade, essa queda de aprovação do governo que a pesquisa Datafolha apresentou foi muito forte. Aliás, não apenas do governo federal, mas também dos governos estaduais e municipais. Acredito que nós nunca vivemos isso no Brasil. Então, como é algo sem precedente a gente não está capacitado ainda a compreender a natureza do fenômeno. A questão é que se houvesse tido uma queda brusca na economia, uma retração econômica forte, como aconteceu em 2008, por exemplo, uma espécie de parada geral, com fim de atividades, desemprego etc tudo bem. Seria um tipo de fenômeno que já conhecemos, seria explicável, mas o que está acontecendo agora é algo completamente novo e a verdade é que não sabemos se a queda na aprovação dos governos vai continuar ou se é algo que, passado o momento de maior efervescência, tudo voltará para mais próximo dos patamares anteriores.

O ex-presidente Lula tem se pronunciado muito pouco sobre todo o quadro, apesar de algumas cobranças para que se manifestasse. A estratégia do silêncio em público, que ele continua mantendo, é a mais adequada, considerando a força de sua liderança política? Especialmente se considerar que em alguns momentos o quadro pareceu muito próximo de fugir do controle das autoridades.

Não sei te responder sobre isso. Talvez ele tenha avaliado que era necessário esperar para avaliar melhor o significado do que estava ocorrendo. Não sei dizer. Quanto ao caráter violento das manifestações, acredito que está bem claro que se trata de uma ação de minorias. Se fosse algo mais generalizado poderia ser motivo de bastante preocupação, mas como algo relacionado a minorias seu significado fica circunscrito. O que não significa que não seja algo para o qual a gente tenha que estar atento, como disse antes, é um evento negativo de todo esse processo.

O senhor chama de reformismo fraco as mudanças que o PT efetivou nos três governos seguidos à frente do País. Há algum juízo crítico a fazer quanto a esta opção petista? Era possível fazer mais e com maior rapidez?

A minha interpretação é que a opção por esse reformismo fraco decorre de uma certa análise da correlação de forças. O que é possível fazer, diante das forças com as quais você conta? Na sociedade, no Congresso e de um modo geral. Tenho dificuldade para avaliar se essa análise feita naquele momento, falamos de um processo que decorre de 2003, estava inteiramente correta ou não. Porém, acho o seguinte, duas coisas: primeiro, é preciso correr algum risco para se fazer o processo de distribuição de renda no Brasil avançar mais rapidamente, diante do teor de desigualdade que existe no País. Acredito como importante fazer o processo avançar de maneira acelerada, mas, por outro lado, não acho que se possa correr riscos de retrocessos. É possível correr riscos, desde que sejam muito calculados, que impliquem em possibilidades reais de avanços.

Quanto ainda à correlação de forças, como o senhor observa o papel do PMDB, que é sempre o grande aliado dos governos no País?

O PMDB, na ciência política brasileira, é um caso muito difícil de compreender. É um partido que tem se mantido forte, sem concorrer à presidência da República, algo inesperado dentro do nosso sistema político. Estamos agora realizando pesquisas sobre isso, o PMDB é uma espécie de jabuticaba da política brasileira, algo que existe apenas em nosso país. O sistema presidencialista forte, que é o caso brasileiro, com um partido que não concorre à presidência da República e permanece forte é algo estranho. Faço muita aproximação entre o PMDB e o velho PSD, não o atual, aquele de antes de 1964. O velho PSD era o grande partido do Interior, assim como o PMDB hoje, ao meu ver, tem sua força nas localidades, na forma de dominação local. As semelhanças, no entanto, implicam numa grande diferença, que está no fato de o antigo PSD ter candidato à presidência, caso, por exemplo, do Juscelino Kubitschek, em 1955, além de ter fortes chances de sair vencedor de novo em 1965, não fosse o golpe militar de um antes. Era, portanto, um partido que disputava a presidência da República, ao contrário do PMDB, que tem declinado de participar. Outro aspecto importante, no entanto, é que se trata de um partido congressual forte e, nessa medida, um fiel da balança que nenhum partido que esteja à frente do governo pode desconhecer.

O poder transformou o PT?

Acho que o partido mudou. Tinha a proposta de ser um partido de classe, abertamente radical, numa cultura política avessa ao radicalismo. O PT tinha características muito especiais no cenário político brasileiro até 2002, ano em que o partido faz uma virada, na minha opinião, para outro tipo de postura, mais amigável ao capital, o que é reforçado pela emergência do que chamo de lulismo, que acabou tomando de conta dele. Mas, é preciso dizer que nesse processo de mudança o PT se tornou um partido muito popular e, de alguma maneira, acabou por tomar o lugar que era do PTB até 1964 e que tinha sido do PMDB nos anos 1970. Pelas características da desigualdade brasileira, este é um elemento de grande força política e eleitoral. A situação do PT hoje é essa, trata-se de um elemento estruturador do sistema partidário brasileiro. O que está posto, em termos de desafio para o PT, é parecido com os desafios colocados para o lulismo: se a situação caminhar na direção da necessidade de tomar decisões políticas importantes, sobretudo na área da economia, o PT terá que fazer opções difíceis.

A crise atual com as recentes manifestações, inclusive, pode criar a oportunidade de reencontro com algumas bandeiras históricas. Por exemplo, a bancada acaba de decidir pelo retorno à luta pela taxação das grandes fortunas no Brasil.

Concordo, acho que pode acontecer isso. O que parece é que a nova conjuntura recoloca em cena o que chamo de conflito distributivo, ela parece estar propiciando uma maior polarização da política e, talvez, uma volta dos elementos que distinguem direita e esquerda. Elementos que ficaram obscurecidos nos últimos dez anos. É uma possibilidade, de fato.

Fonte: O Povo