Publicado 12/08/2013 09:44 | Editado 04/03/2020 16:27
Era uma vez um menino que adorava o mar. Tinha os olhos divididos entre a imensidão do Atlântico e o acervo de sua pequena biblioteca. Lá ele dialogava com Melville, Sabatini, Stevenson e Jack London. As ondas do mar de Iracema eram verdes e pontilhadas de jangadas e jangadeiros. As lombadas dos livros que o menino gostava de ler eram gravadas com tipos que formavam títulos: A ilha do tesouro, Gavião do mar, A volta do Capitão Blood, Moby Dick. O menino queria ser um lobo do mar, um herói da Marinha de Guerra do Brasil.
O garoto que adorava o mar não chegou a ver seu sonho concretizado. O fogo é que entrou na sua história, deturpou seu devaneio, fulminou seu futuro. Foi num remoto quatro de agosto. Era o ano de 1959. João voltava de suas costumeiras aulas de educação física quando foi surpreendido por um incêndio na Casa de Saúde César Cals, devido a uma explosão no depósito de éter e outros gases inflamáveis. Esqueceu tudo, mar, livros, aulas, família e amigos e penetrou nas chamas para socorrer as vítimas desesperadas. Ele e outros mais exercendo o extremo da solidariedade, arriscando a própria vida. E assim foi. João Nogueira atingido em cheio por mais uma explosão quando saiu irremediavelmente queimado. E agonizou até o dia onze, já lá se vão cinquenta e quatro anos. Contava apenas dezessete.
Lembro-me bem, morava em Santana. Assisti a todo o desenrolar do drama, tal novela radiofônica. Através da rádio Dragão do Mar, afeita a grandes reportagens como as realizadas quando do arrombamento do açude Orós. De novo, água e fogo. Tempos depois a emissora voltou à praça da Lagoinha para documentar a inauguração do busto do herói. O que se deu a 25 de setembro de 1960. Lá estavam do governador ao mais simples cidadão. E também representantes da Escola de Aprendizes Marinheiros e do Corpo de Bombeiros Militar. Água e fogo.
A imprensa deu grande destaque à proeza do estudante e seu martírio. Escreveram sobre ele, formadores de opinião como Jáder de Carvalho, Caio Cid, Margarida Saboia, Fávila Ribeiro, Adísia Sá, José Cláudio de Oliveira. Jáder, inspirado como sempre: “João vale como uma réplica aos que já não acreditam na mocidade. Ele arderá perpetuamente, como a chama viva da abnegação e da bravura”.
João Nogueira está lá na praça, rodeado de verde e gente. Altivo em bronze, sob a água da chuva e o fogo do sol abrasador nestes tempos de seca. E se em vida não conseguiu ser um lobo do mar, depois da viagem indesejada, recebe o título de Bombeiro Voluntário. Água e fogo novamente se cruzando. Como nos grandes momentos. Como em Canudos onde o Santo Guerreiro pregava o naufrágio do sertão e vice-versa. Resumo do apocalipse que a cada dia ocorre.
O menino que adorava o mar ganhou mais depois que se foi. Não é muito, não é nada que possa repor tudo nos seus lugares. Mas são grandes coisas que ajudam a manter viva a chama, a dizer que “na terra ainda existem a força do caráter, a beleza moral e o desprendimento que dignifica e eterniza”, usando as palavras do cronista Cid. Um dos mimos, o belo livro Herói e mártir, da lavra do irmão, o guarda de trânsito do desastrado acidente com o velho Hudson. José Jucá Neto escreveu com o fogo da paixão e as águas brandas da relembrança. Memória, documento, preito de saudade. Outro presente, chama que não apaga: seja como membro honorário da Associação dos Ex-alunos do Colégio São João ou o batismo com seu nome ao auditório daquele colégio.
Estas homenagens têm serventia, sim. Quem não conheceu o menino perguntará: E quem foi este ente corajoso, cristão solidário? E servirá como exemplo de grandeza e de nobreza. Infinita como a amplidão do tenebroso mar; viva como a labareda do amor à vida. A qual foi preciso João renunciar para multiplica-la no semelhante. Era uma vez um menino que não conseguiu ser lobo do mar.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: Jornal O Povo
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