Dalia González Delgado: Aonde vai o Egito?

Algumas imagens do Cairo parecem as de uma cidade em guerra. Depois da violência desatada na passada quarta-feira (14), que deixou mais de 600 mortos e três mil feridos, a tensão não diminuiu. Em um país polarizado, é difícil predizer com certeza o que acontecerá nos próximos dias ou semanas.

Por Dalia González Delgado*, no Granma

Os acontecimentos no Egito passarão por uma etapa de “lutas internas confusas”, comentou ao diário Granma o diplomata e pesquisador Ernesto Gómez Abascal, que foi embaixador de Cuba em vários países do Oriente Médio.

O analista considera que “nenhuma das duas grandes forças que se enfrentam no Egito tem um programa para resolver os graves problemas do povo. Parece-me que não há uma alternativa de esquerda para o momento; oxalá surja alguma na luta”.

Por um lado, “a cúpula militar, ainda que possam existir exceções, está muito comprometida com os Estados Unidos, que já a trabalha há muitos anos, especialmente financiando-a. Penso que apoiará uma saída com políticos tradicionais, que não sejam hostis ao Ocidente e, especialmente, que estejam dispostos a não criar problemas com Israel”.

Por outro lado, ainda que a Irmandade Muçulmana conte com respaldo popular, “não é maioria absoluta e pode criar muitos problemas, inclusive levar as coisas à beira de uma guerra civil”, afirma Abascal.

Um critério similar sustenta Reinaldo Sánchez Porro, professor da Universidade de Havana, que explicou ao Granma os caminhos que o Egito poderia tomar “após a guerra civil que parece inevitável”.

Na sua opinião, poderia passar a ser uma revolução radical islâmica; os militares, os nacionalistas, os laicos e a esquerda poderiam vencer os islamitas militar e politicamente, com o tempo; ou poderia dar-se um passo a uma revolução progressista que implique mudanças estruturais.

“Mas, no momento atual”, ressaltou, “o país está dividido em duas metades que vão se distanciando de uma possível reconciliação, como se vê nas multitudinárias manifestações a favor ou contra o governo derrubado de Mursi, enquanto o Exército utiliza a sua força e consolida a sua hegemonia centenária”.

A instabilidade política pode ter também implicações regionais. “O Egito é o país-chave do mundo árabe, o mais povoado e influente na cultura política regional, e esse peso pode arrastar os seus vizinhos em uma ou outra direção”, destaca o especialista.

A Irmandade é mais do que a sua face política

“Enquanto os laicos acusam o governo de Mursi de empreender a islamização do país, muitos setores islamistas o reprovam pelo contrário, ou seja, por não ter aproveitado a oportunidade de aplicar o seu programa de reislamizar a sociedade”, argumentou Sánchez Porro.

Isso explica que os mais radicais salafistas da Frente Al-Nur, que obtiveram 25% dos votos nas eleições legislativas, passaram a opor-se a Mursi, “porque queriam mais, e não menos, Islã político”.

“A Irmandade Muçulmana ganhou de forma limpa as eleições, e isso lhe dá uma legitimidade inobjetável, que é a sua força e a sua debilidade, pois agora qualquer eventual aceitação de um acordo com o governo golpista seria visto por muitos como uma traição dessa legitimidade e princípios”.

Para o professor universitário, é importante ter presente que o bloco social que é a Irmandade Muçulmana, fundada em 1928, com todas as suas instituições atuais de serviços à comunidade, é muito mais do que a sua face política, o Partido Liberdade e Justiça [do Egito].

Em sua trajetória, foi um “movimento-rio” com muitas correntes, “algumas delas praticantes de atentados e violência política que, com o tempo, foram admitindo a via eleitoral que agora lhes é cerrada, após a sua vitória. Isso poderia provocar-lhes um retorno à luta violenta pelo poder”.

O que não se vê

Os Estados Unidos anunciaram, na quinta passada (15), o cancelamento dos exercícios militares conjuntos com o Egito. O presidente Barack Obama disse que ordenou à sua equipe a “avaliação” das ações do governo interino, e os passos que poderiam dar, “caso necessário”, com respeito às relações bilaterais.

Na semana passada, os senadores estadunidenses John McCain e Lindsey Graham visitaram o Cairo para tratar de "reforçar" a "mediação" internacional que tinha sido iniciada pelo subsecretário de Estado norte-americano, William Burns, e o enviado da União Europeia, Bernardino León.

Segundo Abascal, “lamentavelmente, ainda não há uma força popular, progressista, organizada, que represente uma alternativa de poder”. Assim, os Estados Unidos e demais países do Ocidente podem dar-se o luxo de escolher, entre as forças políticas confrontadas, a que seja mais “dócil aos seus interesses”.

Washington está seguindo o princípio (já feito público por Condoleezza Rice, em seu momento) de que naqueles países do Oriente Médio em que não possa exercer o seu domínio, deve-se “fomentar a destruição, a divisão e as guerras internas, para debilitá-los", conclui.

Enquanto isso, Sánchez Porro opina que "os Estados Unidos e a União Europeia mantiveram uma posição muito ambígua, tratando de aparentar que não se inclinam por uns ou por outros, quando se sabe que, por seus interesses, têm que se empregar a fundo em busca da evolução que mais lhes convenha, ainda que tenhamos que esperar um próximo [Edward] Snowden para saber exatamente como tentaram manejar os fios. Na política, como dizia José Martí, o real é o que não se vê".

*Dalia González Delgado é jornalista, da redação internacional do diário cubano Granma.

Fonte: Granma
Tradução: Moara Crivelente, da redação do Vermelho