O materialismo cultural de Raymond Williams

Para o historiador E. P. Thompson, Raymond Williams (1921-1988) “é o melhor entre nós”. O “nós” refere-se à formação da Nova Esquerda britânica, geração cuja produção em diferentes disciplinas, entre os anos de 1960 e 1990, deu uma guinada na vida intelectual anglo-saxã e, por extensão e influência, em diversas outras partes do mundo – com figuras como o próprio E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Raphael Samuel, Perry Anderson, entre outros.

Por Ângela Almeida (*)

Richard Williams

Neto de agricultores e filho de um sinaleiro de estradas de ferro, Williams cresceu em um ambiente confiante nas possibilidades de mudança do modo de vida que excluía sua gente dos bens materiais e espirituais. Beneficiário de um programa de bem-estar social, ele ganhou uma bolsa de estudos para Cambridge, a escola de formação da elite britânica. Diplomado em literatura nos anos do segundo pós-guerra, Williams estava no lugar e no momento certo para perceber uma mudança qualitativa na vida social e avaliar suas possibilidades para uma prática progressista.

Sua principal contribuição se dá no desenvolvimento de uma teoria e de uma prática de análise que criam um novo parâmetro para pensar a questão crucial da cultura. Como ele mesmo conta, muito da mudança qualitativa das sociedades dos países centrais que entravam com todo dinamismo na era dos meios de comunicação de massa aparecia registrado nas novas modulações do sentido da palavra “cultura”.

O seu primeiro passo então foi reconhecer e nomear a tradição que tomava posse do conceito de cultura no livro Cultura e sociedade. Sua apresentação é histórica (1780-1950) – quer demonstrar o desenvolvimento de um tipo de pensamento, como se forma e varia com um claro propósito social. Longe de comprar a designação pelo preço que a tradição idealista a vende – a esfera diáfana do bem-estar espiritual, desvinculada do interesse e, crucialmente, da luta de classes –, ele mostra como essa concepção é funcional para o tipo de sociedade que está se tornando hegemônica.
Fazendo uso da ideia gramsciana de “hegemonia”, Williams argumenta que a cultura é fundamental ao funcionamento e à manutenção do sistema. A dominação essencial de determinada classe na sociedade mantém-se não somente, ainda que certamente se for necessário, pelo poder, e não apenas, ainda que sempre, pela propriedade. Ela também se mantém, inevitavelmente, pela cultura do vivido: aquela saturação do hábito, da experiência, dos modos de ver, que é continuamente renovada em todas as etapas da vida, desde a infância, sob pressões definidas e no interior de significados definidos, de tal forma que aquilo as pessoas vêm a pensar e a sentir é, em larga medida, uma reprodução de uma ordem social profundamente arraigada, à qual as pessoas podem até pensar que de algum modo se opõem, e muitas vezes se opõem de fato.

A novidade central dos estudos de Williams está na demonstração do potencial cognitivo da crítica cultural. Como parte do princípio de que formações sociais e formas culturais são interconstitutivas, ele analisa essas formas como um instrumento de descrição e de interpretação da sociedade que as molda. Uma vez que em uma sociedade baseada na dominação o conflito é permanente, essas formas só podem apresentar, ainda que muitas vezes de maneira que precisam ser desentranhadas pela análise, as contradições que estruturam esse modo de vida.

A descrição apoiada na forma dos produtos culturais revela aspectos que as formações sociais mascaram. E esses produtos não precisam necessariamente ter o alto grau de elaboração que caracteriza as manifestações da chamada grande arte. Como exemplo, vale lembrar sua análise da cobertura da guerra das Malvinas, em 1982, pelo telejornal da rede pública BBC. Ele mostra como a cobertura é instrumental na construção do que chamou de “cultura da distância”. Esta já está cifrada desde a abertura do jornal, um mapa-múndi que não mostra as ilhas em disputa, e é reforçada pelo arremedo de debate público e independência – a BBC é oficialmente desvinculada do governo –, que vai cada vez mais alienando o público dos termos de discussão e fazendo desaparecer a realidade das ilhas, assim como a das pessoas que lá vivem e das que morrerão na guerra. Para Williams, o fato de que a televisão pública de uma das mais tradicionais democracias do Ocidente possa, sem protesto, tratar assim, distanciadamente, um assunto tão candente é um dos índices de que algo importante mudou na sociedade britânica. E essa mudança está também refletida no regime político britânico, que ele descreve como um autoritarismo constitucional, com um governo que a cultura da distância ajuda a manter inquestionado, treinando a sociedade a delegar responsabilidade e decisão a profissionais.

Do ponto de vista estratégico, a teoria de Williams representa uma resposta de esquerda a mais um entre os muitos processos de abstração que caracterizam a vida intelectual contemporânea. Ela apresenta uma alternativa, histórica e materialista, ao famoso giro linguístico das humanidades – um movimento que toma a linguagem em sentido absoluto, como o sistema que nos fala e condiciona. O propósito de Williams é articular um conceito de cultura que possibilite levar em conta as contradições entre agência e determinação, ou seja, que apresente os limites e as pressões a que a ação humana está submetida e ao mesmo tempo preserve um espaço para a mudança. E, ao mostrar que o sentido de cultura não é pré-dado, mas uma articulação provisória de contradições, choques de sentimentos e de consciências, sua teoria deixa claro que a linguagem e os meios de produção cultural são áreas em que, ao contrário do que querem fazer crer as ideologias da imutabilidade, é possível, e necessário, intervir.

(*) Mestre em Direito, Doutoranda em Letras, Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil.

Bibliografia

Cevasco, Maria Elisa. Prefácio. In: Williams, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e
sociedade
. São Paulo: Boitempo, 2007.

Wood, Ellen Meiksins; Foster, John Bellamy. Em defesa da história: marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

Williams, Raymond. Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.