Marina Valente: Doutor, a saúde vai mal, muito mal

"Desculpe-me Doutor, mas a saúde do Brasil vai mal, muito mal. E a pior de nossas doenças, é justamente essa que vocês desenvolvem os sintomas: xenofobia, preconceito e falta de capacidade de entender aonde é que está doendo mais".

“Não é preciso uma técnica de pesquisa para entender que a saúde pública, e até mesmo a privada, vai mal das pernas no Brasil. Basta ter sido paciente um único dia para que o indivíduo chegue à conclusão de que as coisas não vão muito bem. E os problemas não vêm de hoje, são anos e anos de descaso.

Filas, falta de equipamentos e medicamentos, e até mesmo de unidades de atendimento são denuncias encontradas todos os dias nos grandes jornais de nosso país.

O Sistema Público de Saúde (SUS), porém ainda representa um grande avanço frente a outras nações aonde as pessoas ao adoecerem hipotecam casas, abrem cadernetas de poupança ou simplesmente morrem por não conseguir garantir os custos hospitalares.

A doença que consome esse sistema, tanto o público quanto o privado, é fruto de uma lógica industrial, que envolve promessas de campanha jamais cumpridas, interesses econômicos da indústria farmacêutica e também uma lógica econômica e social muito torta, reproduzida por gerações e gerações de médicos e donos de hospital.

Doenças graves podem ser bastante rentáveis.

Os médicos como categoria profissional, podem e devem reivindicar seus direitos. Dedicam-se anos a fios ao estudo e gastam verbas absurdas com livros durante sua formação e toda a sua vida. Embora boa parte da população não receba salários iguais aos dos médicos brasileiros, não existem custos que representem a necessidade de remunerar bem aqueles que salvam vidas.

E também não existem argumentos que justifiquem a situação dos hospitais públicos no Brasil. Mas também não existem argumentos que justifiquem a falta de tratamento humanizado, os pontos fantasmas praticados por alguns médicos e total falta de iniciativa de parte da categoria em se dedicar ao tratamento dos quer mais precisam, mesmo com a oferta de polpudos salários.

O maior exemplo como as coisas podem ser diferentes é dado pela própria categoria. Os médicos sem fronteiras são uma organização humanitária internacional que leva ajuda às pessoas que “mais precisam sem discriminação de raça, religião ou convicções políticas”, conforme eles mesmos divulgam em seu site. http://www.msf.org.br

A organização que foi fundada por médicos e jornalistas atua desde 1971. E surgiu justamente em uma situação aonde faltava “de um tudo” para o socorro médico: uma guerra civil, ocorrida no fim dos anos 60 em Biafra, na Nigéria.

“Enquanto a equipe médica socorria vítimas em uma brutal guerra civil, o grupo percebeu as limitações da ajuda humanitária internacional: a dificuldade de acesso ao local e os entraves burocráticos e políticos faziam com que muitos se calassem frente aos fatos observados (…) surge, então, (…) uma organização humanitária que associa ajuda médica e sensibilização do público sobre o sofrimento de seus pacientes, trazendo à luz realidades que não podem permanecer negligenciadas”, descreve o site.

E a organização cresceu, unindo cerca de 30 mil profissionais de diferentes áreas de atuação e de diversas nacionalidades, dentre elas, brasileiros. GENTE, no seu sentido mais amplo, que atua em mais de 70 países que enfrentam as mais difíceis situações, dentre elas, desastres naturais, conflitos, desnutrição e de exclusão do acesso à saúde.

Alguma semelhança?

“Há mais ou menos um mês, recebemos um menino de nove anos no pronto-socorro que estava na escola quando foi picado por uma cobra – acontece frequentemente com crianças por aqui. Ele chegou andando e falando. Veio porque os colegas o trouxeram. Depois de 30 minutos, ele começou com hiperssalivação, uma hora depois começaram os vômitos e, menos de duas horas depois de sua admissão, ele morreu e nós ficamos lá, impotentes diante dele, porque não tínhamos o soro antiofídico em nossa farmácia”, descreve a médica brasileira Rachel Esteves Soeiro que atua na Ningara.

SIM, a falta de estrutura mínima para um atendimento é a semelhança. Mas, o que mais chama atenção é justamente as diferenças. A grande diferença é de que a médica estava lá. E pela força de seu depoimento, podemos perceber que ela estava envolvida. Isso é o que chamamos de atendimento humanizado. E essa forma de tratamento é a que tem feito falta, aliás, muita falta, ao povo brasileiro.

É justamente a falta de sensibilidade para os que aguardam em filas, a falta do olho no olho durante o atendimento, a fala fria ao receitar exames que provavelmente só serão vistos quando a dor passar e a ausência daquele velho médico que conhecia tão bem a família desde o nascimento dos “meninos” a morte do patriarca, que são fruto maior das reclamações que podemos escutar em uma visita ao consultório.

Sendo assim em nosso país, com vagas abertas em tantos locais de nosso território, com o oferecimento de salários consideráveis que jamais são ocupadas pelos nossos, por que não abrir espaço, para esse outro tipo de médico, capaz de largar seu próprio país para se dedicar de corpo, alma e coração a profissão que um dia escolheram.

Ser médico é bem mais que uma profissão. E quem a escolheu deve, com todo certeza, ter consciência disso. Ou não?

Será que nossos médicos, esqueceram de que optaram por uma profissão da qual a sociedade espera TUDO. Esqueceram que em juramento prometem que em “ (…)toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário (…)“? (juramento de Hipócrates) Esqueceram que no fim, seu oficio representa vida?

Deixem-nos abrir a porta a uma esperança. A esperança de que nas mais distantes vilas desse vasto território haverá uma mão para socorrer. Deixem que venham aqueles que podem ensinar e também aprender. A experiência há de ser gratificante.

“É muito interessante porque os enfermeiros sempre fazem perguntas sobre os pacientes e acabamos tendo boas discussões clínicas, que, em minha opinião, é a melhor forma de aprender, porque assim eles se lembrarão do caso e o associarão à teoria (…) No mês passado, recebemos dois médicos congoleses recém-formados para estagiarem conosco(…) “ensinar” os médicos, eles são interessados e gostam de discutir”, descreve Soeiro.

Enquanto isso, médicos brasileiros prestam-se o papel de xingar médicos cubanos que chegam ao Ceará. A sensação do povo é de vergonha. Justamente os médicos cubanos, conhecidos por viajar por tantos países levando essa mão que tanto desejamos? Donos de uma fama considerável pela dedicação a medicina da família e ao atendimento básico preventivo. Por quê?

A explicação estaria em um estranho nacionalismo do nosso “corpo médico”? Não. Costumamos abrir as portas para receber sem preconceitos, médicos advindos de tantos outros países, alegramo-nos com palestras e com o conhecimento de novas técnicas desenvolvidas. E por que não lembrar que algumas vezes fazemos isso com estrangeiros nem tão especialistas assim?

Além do mais, se fosse nacionalismo de verdade, nossos doutores não se incomodariam de seguir curando nosso povo em todo canto da nação.

Seria então puro protecionismo profissional? Mas que proteção é essa de um emprego que não se quer ocupar?

Quem sabe, poderíamos dizer que é uma chance de chamar a atenção para as condições de saúde do Brasil? Mas que tipo de manifestação é essa, que agride iguais? E por que se silenciam nossos médicos quando gritam pacientes em macas de hospital? E por que não denunciam a vergonha dos planos de saúde, sempre tão caros e ineficientes?

Ou será que tudo isso é por força dessa grande indústria que se alimenta de todo mal?

Desculpe-me Doutor, mas a saúde do Brasil vai mal, muito mal. E a pior de nossas doenças, é justamente essa que vocês desenvolvem os sintomas: xenofobia, preconceito e falta de capacidade de entender aonde é que está doendo mais”.

Marina Valente é jornalista e editora do blog Dona Megafone

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