Bruno Peron: América do Sul, tudo é e tudo poderá ser

A América do Sul é a região onde tudo é e onde tudo também poderá ser. 

Por Bruno Peron, em seu blog

A linha progressiva da modernidade (de acordo com as ideias positivistas francesas), que nos faz olhar a alguns países como se fossem irradiadores do melhor que a humanidade produziu, é ardilosa. As contradições do moderno acompanham dialeticamente esta linha. Por isso, a América do Sul tem indicado caminhos de subversão da modernidade que fazem cócega nos ideólogos arrogantes de países que se julgam berços da civilização e propagadores da ciência.

O pior e o melhor do mundo aconteceu e ainda poderá acontecer na América do Sul: debate infindável entre Estado e mercado, contraste entre a viabilidade das políticas de prazo curto e a utopia das de prazo longo, excesso de corrupção mas também seu combate constante com unhas e dentes, risco iminente da cultura autoritária (mas que não se manifesta somente em nossos países). Da mesma maneira, a América do Sul aplica modelos institucionais (Estado, democracia, Ministério, republicanismo, presidencialismo) às suas mal-entendidas sociedades. Para citar somente o caso do Brasil, as manifestações do povo pululam nas ruas em busca da concretização do Poder Popular, que é o quarto poder em relação ao Executivo, Legislativo e Judiciário.

Como antecedente do meu argumento neste texto, menciono que dezenas de especialistas em ação cultural de vários países reuniram-se em Mônaco em dezembro de 1967. Daí surgiu o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) intitulado Cultural policy: A preliminary study, que me inspirou a redatar este texto. Numa de suas páginas iniciais, o relatório esclarece que "não pode haver uma política cultural adequada a todos os países; cada Estado Membro determina sua própria política cultural de acordo com os valores, objetivos e escolhas culturais que define para si."

Este relatório da UNESCO fez-se para orientar as transformações culturais no mundo. Sua importância está na proposta de universalidade camuflada sob a de diversidade das culturas. Este processo ocorre da maneira seguinte: a diversidade entre os países preserva-se desde que se expresse pela ferramenta da política cultural (geralmente por algum Ministério ou Secretaria) e pela máquina política ocidental chamada Estado. O ideal de realização é o mesmo em todo lugar: programas de alfabetização, democratização da cultura, desenvolvimento cultural, descentralização das decisões, estatística cultural, preferências culturais e meios massivos.

Igualmente, modelos de gestão da coisa pública coexistem na América do Sul: a democratização da alta cultura de acordo com a política cultural francesa da época de André Malraux como Ministro de Assuntos Culturais na década de fundação deste Ministério; o discurso de cultura e desenvolvimento da Espanha e de seus organismos internacionais; e a massificação das indústrias culturais de acordo com o modelo dos Estados Unidos.

Porque a América do Sul é uma região (mais histórico-cultural que geográfica) onde tudo é e onde tudo poderá ser, nossas experiências podem dar lições alhures (a votação em urnas eletrônicas, o tratamento de doenças, a convergência étnica). A novidade para os gestores da América do Norte é que escrevemos uma nova história para a "democracia na América" na medida em que os protestos populares no Brasil reivindicam maior poder ao povo. Dessarte, olhar aos de fora com admiração não condiz com os frutos de dentro que tanto se cobiçam.

Sabe-se que as desigualdades e as hierarquias criam-se de cima. A única forma de abalo é quando o povo, que sustenta esta estrutura de baixo, usa ferramentas da indústria avançada (as redes sociais) para demonstrar sua insatisfação. Os mantenedores de tal estrutura, no entanto, não fazem mais que ceder às pequenas demandas para manter as desigualdades e as hierarquias. O povo que se contenta com pouco deixa, assim, de avançar na consolidação do Poder Popular (por exemplo: meio-cidadãos anônimos queimam ônibus e maculam o vigor dos protestos).

No entanto, as demandas autênticas a favor do Poder Popular e de uma grande transformação provam que o melhor resultado provém do momento em que a cria escapa da coleira. Foi assim com os Estados Unidos em relação à Inglaterra, pois aquele país emergiu intrépido de uma guerra e, logo, impôs seu modelo industrial ao resto do mundo. Esta afirmação não pretende fazer apologias senão indicar que, por exemplo, as principais redes sociais (Facebook, LinkedIn, Twitter) têm sede na Califórnia. Nesse meio-tempo, o Sul propõe aquilo que poderá ser.

*Bruno Peron é acadêmico e articulista, com interesses em cultura, América Latina e relações internacionais. Bacharel em Relações Internacionais, mestrado em Estudos Latino-americanos pela Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) e doutorando em Administração Cultural em Birkbeck College, Universidade de Londres.