Literatura e questão nacional

A história do pensamento brasileiro está atravessada pelo fascínio da questão nacional. Ela diz respeito a como se cria e recria a nação, em cada época, conjuntura ou ocasião. Permite pensar tanto alguns momentos cruciais da história da sociedade como algumas produções notáveis do pensamento. Ressoa inclusive nas produções artísticas. Está no ensaio e na monografia, no romance e na poesia.

Por Ângela Almeida

Silvio Romero

No passado e no presente, são muitos os que se preocupam em compreender os desafios que compõem e decompõem o Brasil como nação. E essa preocupação se revela particularmente acentuada nas conjunturas assinaladas e simbolizadas pela Declaração da Independência em 1822, Abolição da Escravatura e Proclamação da República em 1888-89 e Revolução de 1930.

Fontes literárias e histórico-culturais desenham os contornos do debate em que a inteligência nacional se empenhava na segunda metade do século XIX, em torno de questões até hoje não resolvidas: nação, nacionalidade, raças, regiões, natureza x homem, influências estrangeiras, cultura e literatura brasileira, história e pátria.

O período de 1870 a 1930 é chave no processo da revolução burguesa do país: transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, fim da monarquia e advento da república, presença forte do positivismo e do historicismo na cultura, atuação do Estado como fator determinante de coesão nacional.

Os escritores da “geração de 1970” estão entre os primeiros críticos e historiadores sistemáticos das letras nacionais: Araripe Júnior e seu tropicalismo pioneiro; José Veríssimo e a crítica ao modernismo sectário da Escola do Recife; Joaquim Nabuco e seu abolicionismo nostálgico.

José Veríssimo

Mas a figura central é sem dúvida a de Sílvio Romero, como pivô de um gênero literário que combina a novidade do espaço público, valores tradicionais como a honra e duelo, e boa dose de personalismo: a polêmica.

As polêmicas de Sílvio Romero se inserem no movimento crítico da Escola do Recife, participante da virada antirromântica a partir de 1870. Esse movimento correspondeu, em termos de crítica literária, à introdução do naturalismo, do evolucionismo e do cientificismo, e tomou as noções de raça e natureza, com o fim de dar fundamentos “objetivos” e “imparciais” ao estudo da literatura. A adoção de tais modelos, predominantes até o início do século XX, tornou possível a abordagem da literatura e da cultura de um ponto de vista histórico-social.

A crítica literária e as polêmicas culturais revelam as concepções de literatura e sociedade correntes na “geração de 1870”. A relação entre crítica e história desponta como fundamental. Sílvio Romero procurou aproximá-las, ao atribuir à crítica a missão de contribuir para a construção da nacionalidade, no que dava continuidade à tradição romântica, apesar de se opor à sua estética.

Romero localiza a formação da nacionalidade literária no vínculo entre mestiçagem e poesia popular: “No dia em que o primeiro mestiço cantou a primeira quadrinha popular nos eitos dos engenhos, nesse dia começou de originar-se a literatura brasileira”. A literatura brasileira se afirmaria, a partir de Gregório de Matos, pela crescente autonomia diante das culturas portuguesa, africana e indígena. A diferenciação é tomada, portanto, como critério de valor literário: “Tudo quanto há contribuído para a diferenciação nacional, deve ser estudado, e a medida do mérito dos escritores é este critério novo”.

Os projetos de história literária da “geração de 1870” desembocaram nas propostas antitéticas de Silvio Romero e José Veríssimo. Na História da literatura brasileira (1888), Romero propõe um conceito amplo de literatura como sinônimo de cultura e dá ênfase à perspectiva histórica. Já Veríssimo, na sua História da literatura brasileira (1916), elabora uma concepção estrita de literatura como “boas e belas letras”, apoiado em teorias estéticas e na retórica clássica.

Ao longo das polêmicas entre Romero, Veríssimo, Araripe, Capistrano de Abreu e Teófilo Braga, surgem questões até hoje presentes na crítica literária: o predomínio da história ou da estética na interpretação literária, o destaque dos fatores extrínsecos ou intrínsecos da obra, a análise do tema e conteúdo ou da forma e linguagem, o conceito genérico ou específico de literatura.

A “geração e 1870” introduziu no Brasil a cultura histórica moderna, ao romper as amarras do pensamento religioso em prol de uma visão laica do mundo. Na Faculdade de Direito do Recife, Tobias Barreto e Sílvio Romero contestaram a teoria do direito natural, em que a ordem cósmica e social era concebida como sagrada e imutável. Na concepção histórica e evolutiva de Barreto e Romero, o direito deveria se adaptar à evolução social, o que tornava possível a crítica ao status quo, amparado na monarquia e na escravidão.

No Rio de Janeiro, discutiam-se ideias positivistas, como a separação entre a Igreja e o Estado e a superação da religião pela filosofia, em centros de ensino, como a Escola Central, Escola Militar e Escola Politécnica. Os ideários antiabsolutista e antiescravista se difundiram no último terço do século XIX, associados a concepções literárias e teorias de base naturalista.

Apesar da heterogeneidade de pontos de vista, da diversidade das formas de metabolização dos temas doutrinários e das polêmicas entre os diversos grupos, uma referência comum legitima o uso da expressão "geração de 1870". Todos pensaram o Brasil moderno, o capitalismo nacional, o capitalismo associado, a industrialização, o planejamento governamental, a reforma da educação, a reforma agrária, a institucionalização de garantias democráticas, a mudança das instituições e atitudes, a reversão das expectativas, a reforma política, a reforma social. Em distintas gradações, as perspectivas de uns e outros se abrem em um leque bastante amplo, compreendendo propostas de cunho liberal, liberal-democrático, corporativo, fascista, socialista e outras.

Na virada do século, passou-se, porém, a considerar limitado o alcance de tais reformas. As ideias da “geração de 1870” sobre literatura e sociedade foram revistas em direções e tendências conflitantes. Por um lado, reconheceu-se o caráter político e ideológico e, portanto, não universal da produção cultural. Ao mesmo tempo, procurou-se fundar uma história literária e uma ciência social dotadas de métodos e teorias específicos. Desaparecia da cena histórica o bacharel combatente, com seu saber enciclopédico, substituído por escritores e intelectuais partidarizados e especializados. Mas isso já é outra história.

ângela Almeida é Mestre em Direito e doutoranda em Letras.

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