O gosto da cidade

O escritor Milton Hatoum mora em Manaus. Quer dizer, ele mora na atual capital do Amazonas. A Manaus onde ele, manauara, cresceu e vê os anos passarem, essa desapareceu. O boto comeu. Com visível tristeza, ele constata que a especulação imobiliária, a ganância, fez e desfez, segue fazendo e desfazendo o que bem quer com sua cidade.

Por Jaime Sautchuk

Manaus

A história, os legados do passado que se danem. Seu consolo é o encontro das águas do Negro e do Solimões, aquelas cores que lentamente se mesclam formando o rio maior, o riozão. E então ele vai buscar redutos mocozeados nos fundões da mata, inspirar-se em frutos e folhas, nas flores caídas.

Darcy Ribeiro dizia que o brasileiro gosta mesmo é da cidade, do urbano. Se formos ver, desde os primeiros habitantes desse vasto rincão tupiniquim era um pouco assim, mas sem estresse.

O índio gostava de se agrupar em suas aldeias, que eram, no fim das contas, as suas vilas. Saiam pra procurar alimentos, coletar, caçar, pescar, mas voltavam pras aldeias. Ali tinham tudo pro seu viver. As refeições em grupo, os casamentos, os partos, as cantorias, as festas, os ritmos e danças — tudo era ali, nas suas vilas.

O fato é que o brasileiro guarda no peito, mesmo que lá bem escondidinho, um certo preconceito que coloca o homem da roça em condição de inferioridade. É como se fosse um ser menor.

Dói isso, mas é isso.

O brasileiro gosta de cidade, como Hatoum adora Manaus. Nossas cidades é que não gostam do brasileiro. A Manaus de hoje não quer saber de Hatoum.

Quem manda nas cidades não somos nós, brasileiros. É a ganância, o tilintar dos dinheiros, o automóvel, este rei da cocada preta.

No Brasil, o trem partiu faz tempo, e não voltou nunca mais. Ir pra casa ou pro trabalho, ou quem sabe algum lazer, é um baita suplício, amargo padecer. Água e esgoto, tantos nem têm. Mas um ranchinho aqui, um casarão acolá, espremendo dá… Pros lados ou pra cima

Até Manaus já lotearam e vão lotear além do nosso pensar, muito pra lá — já se fala em loteamento até na Serra do Aracá. O alegre, doce, sublime convívio em comunidade já morreu. Algum monstro comeu, amado Hatoum.

A cidade é que não quer saber de nós, viu, professor Darcy?!