Eremias Delizoicov, presente

Na sexta-feira passada, recebi um convite para uma homenagem a Eremias Delizoicov. O convite me chegou por email de Renan Quinalha, assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, com estas palavras:

Por Urariano Mota.

Eremias
“Escrevo porque faremos uma audiência pública da Comissão da Verdade na antiga Escola Técnica Federal de São Paulo e lemos um belo relato que você fez sobre a amizade entre vocês chamado ‘Vesti azul’.
 
 
Na audiência pública, marcada para o dia 16 de outubro a partir das 19h no auditório da Escola, estarão presentes familiares do Eremias (mãe e irmão) além de antigos professores e companheiros de militância. Sua presença engrandeceria demais a homenagem que desejamos prestar à memória de Eremias e de sua família. Conseguimos até mesmo que a Escola, nessa oportunidade, conceda à família de Eremias um certificado simbólico de conclusão de curso…”.
 
Em primeiro lugar, devo esclarecer que esse convite é uma honra desmedida, pois jamais poderia imaginar que um texto sobre o heroico Eremias pudesse reverberar cinco anos depois. Em segundo lugar, esclareço que apesar de não comparecer à justa homenagem ao bravo socialista, à cerimônia eu vou com o melhor que posso. Ou seja, com a minha forma preferida, que nem precisa da minha insignificante pessoa. Por isso, recupero aqui o texto que escrevi há cinco anos.
 
Vesti azul

Urariano Mota
Quando vem o primeiro de abril, sempre me lembro do que chamavam a revolução de 31 de março. A história oficial sempre antecipou em um dia o golpe de 64 para evitar o ridículo. E aqui e ali volta para mim o terror daqueles anos na forma de pessoas e canções. Lembro, por exemplo, de Eremias Delizoicov, a quem conheci na Escola Técnica Federal de São Paulo. O menino que eu vira em 1968 não anunciava o cadáver de 18 anos, perfurado de balas, o rosto irreconhecível porque uma só ferida, os cabelos tão úmidos, tão grossos por coágulos de sangue, que davam a impressão de flutuar no chão seco. Nada havia naquele cadáver que lembrasse o jovem que eu conhecera. Eremias não era aqueles olhos apertados, a boca aberta à procura de ar, a lembrar um afogamento.

“Vesti azul, minha sorte então mudou. Vesti azul, minha sorte então mudou…”, não, não pensem que enlouqueci. Há uma coerência entre essas canções despretensiosas, alegres, leves, e os cadáveres dos terroristas na ditadura militar. Não pensem jamais que vicejam hinos do Drácula em épocas sombrias, de repressão. Pelo contrário.

Na Escola Técnica Federal de São Paulo, Eremias Delizoicov foi a minha salvação no meio daqueles meninos burgueses, lembro. A Escola Técnica daqueles anos possuía alunos da elite econômica do Brasil. Certo dia, percebi que um jovem gordo, que se vestia com blusões de couro tão natural como uma segunda pele, era filho do dono da Aços Villares. E eu então me encolhi mais em minha camisa de algodão, nos 10 graus do inverno paulistano. A conversa daqueles alunos toda era sobre carros, motos, motores, esportes.

Onde um amigo, uma alma, um leitor, um irmão que entendesse e falasse sobre Platão, Descartes, os grandes inventos da humanidade, a música de Chopin? Quando me perguntavam sobre máquinas, potências de motores, eu lhes respondia que mais me preocupava O Discurso do Método. Um ridículo imenso caía então sobre o nordestino que não possuía nem bicicleta.

“Pensam que a pobreza é lixo, e que rapaz pobre não tem coração”. Não, não pensem que enlouqueço ao lembrar essas canções melosas, adocicadas, daqueles férreos anos. “Estava na tristeza que dava dó, vivia amargamente e andava só”, lembro, tão nitidamente quanto lembro a diferença, o contraste dessa canção com a vida que não poderia brotar, de um mundo reprimido naqueles anos. “Que azul é a cor do céu, e do seu olhar também… Vesti azul, minha sorte então mudou”, cantava Simonal. Por não ter camisa azul, eu procurava o azul do espírito. Uma coisinha estúpida, a procurar uma alternativa que não fosse pular fora da vida.

Ao escrever agora, não resisto ao impulso de desejar o impossível, que fôssemos mais maduros em 1968. Se não maduros, pelo menos profetas, leitores do futuro, videntes.

A morte torna as pessoas mais razoáveis e transparentes à humanidade. Se não todas as mortes, pelo menos algumas dão um vulto a essas pessoas que antes não víamos. Eremias morreu como um herói, permitam-nos dizer. O aparelho onde estava caíra. Fora entregue por um outro jovem preso, que não suportara as torturas. Cercado por forças do Exército, Eremias sozinho resistiu. Resistiu à bala, sem nenhuma esperança. A distância nos permite dizer que ele, naquele tiroteio cerrado, chamava a atenção dos demais companheiros fora. Que a casa não era mais segura, para ninguém. Outra hipótese que nos ocorre é a de ele saber que não havia mais saída, se caísse vivo. A saber, não haveria mais saída de continuar vivo, sem delatar.

Talvez ele tenha querido evitar, no fim e enfim, ser uma coisinha estúpida, a balançar nervoso numa câmara de tortura. Algo estúpido, tão estúpido quanto um “Vesti azul” de primeiro de abril.