Raul Carrion: A inadiável reforma urbana
No Brasil, milhões de homens e mulheres, expulsos do campo pelo latifúndio improdutivo, são lançados a cada ano na periferia das grandes cidades. Aí vivem com dificuldade de ter acesso a um trabalho digno e em condições precárias de habitação, saúde e educação.
Por Raul Carrion*
Publicado 14/10/2013 18:52 | Editado 13/12/2019 03:30
Os governos neoliberais que leiloaram as riquezas da nação liquidaram com os direitos dos trabalhadores, arruinaram milhões de pequenos produtores e ampliaram o desemprego – agravaram ainda mais a miséria e a marginalização da maioria da população dos grandes centros urbanos.
Segundo o último censo, hoje 84,4% da população – mais de 160 milhões de brasileiros – vivem nas cidades, onde faltam moradias dignas para 17 milhões de famílias, sendo cinco milhões de déficit quantitativo (falta absoluta de moradia) e 12 milhões de déficit qualitativo (habitações inadequadas). Desse déficit habitacional, 90% s famílias com renda de até três salários mínimos e 96,6% com renda até cinco salários mínimos, para as quais não existe solução através do mercado imobiliário. No que toca ao saneamento, a maioria não dispõe da coleta de esgoto (53,8%) e tratamento de esgotos (62,1%), e grande parte carece de água tratada, luz e recolhimento de lixo.
Assim como o latifúndio impera no campo – onde 1,7% dos proprietários possuem 52% das terras cultiváveis – nas cidades um punhado de especuladores monopoliza as terras urbanas. São os vazios urbanos, mantidos sem uso, à espera de valorização pelos investimentos públicos pagos por toda a população (água, luz, esgotos, pavimentação, serviços públicos em geral). Ao mesmo tempo, mais de 7,2 milhões de moradias são mantidas vazias e fechadas, a maior parte delas com fins especulativos.
A consequência dessa retenção especulativa de terras urbanas e moradias sem uso é seu enorme encarecimento. O que se intensificou ainda mais com os grandes investimentos dos governos Lula e Dilma em habitação popular e com a explosão imobiliária gerada no país. Assim, nas últimas décadas o custo da terra saltou de em torno de 10 a 15% do preço total da moradia para 30 a 40%. E, entre 2009 e 2012, o preço dos imóveis subiu 153% em São Paulo e 184% no Rio de Janeiro.
Dessa forma, o preço exorbitante da terra inviabiliza aos trabalhadores a aquisição de um terreno para a autoconstrução de sua moradia e onera enormemente os custos dos projetos públicos e privados de habitação popular. Outra consequência é o crescimento da segregação espacial das populações mais pobres – inclusive no Programa Minha Casa Minha Vida –, que são jogadas em áreas cada vez mais longínquas e desprovidas dos serviços essenciais.
Quanto ao mercado imobiliário privado, só consegue produzir moradias sem subsídios para famílias com renda superior a 10 salários mínimos (18% da população total e 0,6% do déficit habitacional do país), não atingindo sequer a maioria da classe média, não tendo condições, portanto, de produzir moradias para a população de baixa renda. O resultado é a ocupação irregular e desordenada pelas camadas empobrecidas das terras ociosas, públicas e privadas, inclusive áreas de preservação, nascentes dos rios e áreas de risco.
É preciso ter claro que essa terrível e injusta realidade urbana reproduz a lógica da sociedade capitalista e o chamado “livre mercado”. Uma lógica excludente e concentradora de renda, que desmente o discurso liberal ou neoliberal de que as “forças do mercado” são capazes de levar a uma sociedade equilibrada e justa. Ao contrário, o mercado capitalista nasce, ele mesmo, da desigualdade entre os que produzem e os que se apropriam, e reproduz de forma ampliada essa desigualdade.
Por isso, impõe-se a intervenção do Poder Público para regular o mercado fundiário e imobiliário, destinar recursos subsidiados para o saneamento básico e a produção de moradias para as camadas mais pobres e exigir o cumprimento da função social da propriedade – consagrada no artigo 182 da Constituição Federal e regulamentada no Estatuto da Cidade –, que prevê para as terras que não estejam cumprindo sua função social o parcelamento e a edificação compulsória, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública. O que, passados 25 anos da promulgação da “Constituição Cidadã” e 12 anos do “Estatuto” ainda não foi à prática.
Ao lado dos graves problemas habitacionais e de saneamento, convivemos com uma grave crise do sistema de transporte público em nossas cidades – onde impera um modelo de transportes centrado no veículo individual –, causando enormes congestionamentos e perda de tempo nos deslocamentos, principalmente dos trabalhadores que vivem nas periferias, altos índices de mortalidade por acidentes de trânsito (mais de 40 mil mortos ao ano e 120 mil vítimas com sequelas permanentes) e aumento da poluição. A preferência irracional pelo transporte individual faz com que dos mais de 30 milhões de veículos existentes no país, 25 milhões sejam automóveis e apenas 120 mil sejam ônibus. E as altas tarifas do transporte público fazem com que hoje mais de 50 milhões de brasileiros se vejam forçados a se deslocar a pé nas grandes cidades.
Apesar do marco regulatório da mobilidade urbana afirmar a prioridade do transporte público sobre o individual e do não motorizado sobre o motorizado, o que vemos na realidade são crescentes subsídios e incentivos fiscais para a aquisição de automóveis e não para a compra de ônibus e outros meios de transporte coletivo. O que é reforçado ainda mais pelas obras de infraestrutura em nossas cidades, voltadas principalmente à circulação de automóveis.
Fica cada vez mais claro que a solução para a crescente deterioração dos grandes centros urbanos no Brasil – cuja maior expressão foram as manifestações de junho – é mais política do que técnica ou administrativa. Impõe-se uma efetiva Reforma Urbana que enfrente a especulação imobiliária em nossas cidades, exija o cumprimento da função social do solo urbano, priorize o transporte coletivo frente ao transporte individual e combata a degradação ambiental.
Mas, a Reforma Urbana que queremos – e que é o mote da 5ª Conferência Nacional das Cidades – só se tornará realidade através da mobilização, organização e consciência daqueles que são os maiores interessados em mudar essa situação: os milhões de sem-teto, ocupantes, inquilinos, moradores das periferias das nossas cidades que lutam pelo direito de morar com dignidade, ter acesso aos serviços públicos essenciais e a um transporte público barato e de qualidade.
*Raul Carrion é Membro da Comissão Política do Comitê Estadual do PCdoB-RS