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Fábio Palácio: Uma revolução de muitas revoluções

Parte 2
Citada como exemplo no tópico 140 das Teses, a China tem sido bem-sucedida no esforço de modernização e adensamento tecnológico de suas cadeias industriais. Possui, contudo, um modelo ainda excessivamente focado no terceiro e, quando muito, no segundo tipo de inovação mencionado na primeira parte desta série de artigos.
Por Fábio Palácio*

Em face dessa realidade, os chineses definem como seu principal objetivo atual no terreno científico e tecnológico o de “incrementar a capacidade de inovação autônoma”. É o que afirmava o então presidente Hu Jintao em seu informe ao 17° Congresso do PCCh (2007). Cinco anos depois o tema continuava em pauta com centralidade, como vemos neste trecho do informe de Jintao ao 18° Congresso do PCCh:

“Devemos seguir com firmeza o caminho da inovação independente com peculiaridades chinesas, projetar e impulsar a inovação com visão global, incrementar a capacidade de inovação original, inovação integrada e reinovação mediante a introdução e assimilação de tecnologias do exterior, e prestar mais atenção à inovação colaborativa.” (JINTAO, 2012, traduzido do espanhol)

O programa, representativo das ambições chinesas, poderia ser subscrito na íntegra pelos comunistas brasileiros. Importa ressaltar, porém, que o trecho citado contém em si um profundo, embora pouco aparente, sentido autocrítico. Pois, ao passo que indica a necessidade de perseverar no modelo de absorção de tecnologia do exterior, aponta simultaneamente a tarefa de avançar naquilo que os chineses denominam inovação “original”, “autônoma” ou “independente”. Trata-se, em síntese, da busca de um padrão científico e tecnológico capaz não apenas de inovar em sentido genérico, mas, para além disso, de empreender inovações fundamentais autonomamente. Como bem sabem os chineses, há imensas vantagens em iniciar uma revolução tecnológica no próprio país.

Assim, se é para adotarmos a China como referência, que a adotemos por completo, e não apenas nos aspectos, digamos, mais consolidados de sua política científica e tecnológica.

É claro que um modelo focado em engenharia reversa já seria a solução para muitos dos problemas brasileiros, dada a grave desconexão que verificamos, no Brasil, entre estruturas acadêmicas e industriais. Porém, mesmo nesse caso é sempre bom lembrar: não há como avançar em pesquisa tecnológica sem boa, extensiva e desinteressada pesquisa básica. Em tempos de ênfase à inovação, nos quais o objetivo central da política científica e tecnológica passa a ser, muito corretamente, o adensamento tecnológico de nossas cadeias produtivas, é preciso cultivar visão multilateral e ter em conta a importante questão levantada por BARBIERI (1990, p. 56):

“Para uma unidade produtiva isoladamente considerada é possível a produção de tecnologia sem a produção de novos conhecimentos científicos, porém, em nível global da sociedade, isso não seria possível por muito tempo. De fato, atualmente, a ciência e a tecnologia mantêm uma interdependência intensa e complexa, de forma que não é mais possível sustentar um ritmo adequado de produção de novas tecnologias sem a correspondente produção de conhecimentos científicos. Assim, sem pesquisas científicas o progresso tecnológico se torna inviável a médio e longo prazos.”

Os países da fronteira tecnológica sabem disso. Por esse motivo sustentam maciços investimentos em pesquisa básica, formação de recursos humanos e, simultaneamente, em todos os outros elos que compõem a cadeia inovadora – pesquisa aplicada, desenvolvimento experimental, engenharia e marketing. Evitam, assim, desequilíbrios e insuficiências. E tornam-se capazes de empreender inovações fundamentais, as quais respondem por um dos aspectos essenciais do poderio desses países: a capacidade de ditar a obsolescência das tecnologias em vigor nas nações periféricas, processo de profundas consequências não apenas micro e macroeconômicas, mas também sociais, políticas e culturais.

E aqui chegamos ao ponto de engate com uma questão de grande importância que emana dos tópicos 139 e 140. Certamente se pode dizer que o problema financeiro e macroeconômico é decisivo para a resolução da problemática científica e tecnológica. Mas é legítimo, e mesmo indispensável, cogitar também do contrário. Ou não seria a ciência e tecnologia fator decisivo para a resolução do problema macroeconômico e financeiro?

Vale lembrar que o poderio econômico e financeiro do mundo anglo-saxão provém, em última instância, da imensa acumulação propiciada por uma Revolução Industrial cujas raízes remetem a outra revolução, esta de cunho cultural, técnico e científico, processada desde os albores da chamada escola de Oxford. Essa escola filosófica inaugura, já a partir da Baixa Idade Média, o trabalho de renovação da perspectiva empirista que terá continuidade com nomes como Bacon, Hobbes e Locke. A “missão” resultaria na afirmação de um ponto de vista anglo-saxão sobre as relações entre o conhecimento e o trabalho, o qual teria na própria Revolução Industrial seu resultado mais visível.

O exemplo mostra que as fontes do poder de uma nação emanam, mais que da economia, do trabalho em suas múltiplas dimensões (econômica, social, política, cultural). Nessa perspectiva, o conceito de poderio nacional precisa assumir significado mais amplo que o econômico – embora tenha neste um aspecto essencial. O conhecimento tecnocientífico precisa ser inserido nessa equação como fator destacado, pois, como afirma Pirró e LONGO (1984, p. 69), “ciência e tecnologia constituem, indubitavelmente, no mundo moderno, uma das expressões do Poder Nacional. Além de expressão que merece consideração à parte, elas têm profundas influências nas demais expressões do Poder Nacional”.

Nessa perspectiva, a ciência e tecnologia não pode ser tratada como mero apêndice de um programa de política econômica. É necessário considerar as dimensões política e cultural necessariamente envolvidas, e igualmente decisivas à construção de uma nação verdadeiramente próspera e independente. Ou, como explica BARBIERI (1990, p. 155),

“[…] A ação governamental sobre a condução do processo de produção, aquisição e utilização de tecnologias não deve ser feita apenas em função de aspectos econômicos, mas também dos seus efeitos, diretos e indiretos, sobre o meio social e natural. Ou seja, para os países em desenvolvimento, a questão tecnológica não se coloca apenas como fonte de aumento de produtividade, mas principalmente como fator de autonomia, pois a dependência de tecnologia externa traz consideráveis obstáculos à própria condução do desenvolvimento econômico e social que estes países desejam.”

Um dos “obstáculos” a que se refere Barbieri pode ser visualizado no fenômeno denominado “consumo imitativo”, que discutiremos na terceira parte desta série de artigos.

*Fábio Palácio é Membro da Comissão Nacional de Formação do PCdoB.