Ascenso Ferreira, Minha Língua

Recife foi ocupada, ao longo desta semana, pela memporia de seu grande poeta, Ascenso Ferreira (1895-1965). Entre os dias 22 e 25 de Outubro, a capital pernambucana assistiu à Mostra Ascenso, Minha Língua, que se desdobrou numa série de festejos em sua homenagem; o SESC Santa Rita se juntou a eles e deu o nome do poeta para seu Laboratório de Autoria Literária. No conjunto, foram muitas vozes e múltiplos olhares.

Ascenso Ferreira

Foram convidados artistas de várias linguagens, pois seu texto possibilita as mais diversas leituras e releituras. Teatro, dança, performance, música, gastronomia, recitação, fotografia, grafite, videoarte e conversas sobre a obra do autor. Esse foi o espmírito da festa! Vamos comer, digerir, saborear o poeta e sua tão moderna estética. Prosa Poesia e Arte junta-se aos festejos e publica, nesta edição, alguns de seus poemas memoráveis.

Xenhenhém Nº. 2

Em meio às minhas muitas dores
talvez maiores do que o mundo,
surges, às vezes, um segundo,
cheia de pérfidos langores.
Chegas sutil e sem rumores…
E até sinto o odor profundo
No qual eu sôfrego me inundo
─ pária do amor, sonhando amores.
Depois, tu falas não sei donde…
És como um eco que responde
Mas, sempre e sempre, além… além…
Súbito, encontro a casa oca.
Não estás! ─ Meu Deus, que coisa louca,
Só é na vida um xenhenhém!

 

Martelo

Teu corpo é branquinho como a polpa do ingá maduro!
Teu seio é macio como a polpa do ingá maduro!
– E há doçura de grã-fina no teu beijo, que é todo ingá…
– E há doçura de grã-fina no teu beijo, que é todo ingá…
Por isso mesmo,
Minha Maria,
Eu, como a abelha
do aripuá
pra quem doçura
é sempre pouca,
só que quero o favo
de tua boca…
Há veludos de imbaúba nessas redes de teus olhos,
que convidam, preguiçosas, a gente para o descanso,
um descanso à beira-rio como a ingazeira nos dá…
– Um descanso à beira-rio como a ingazeira nos dá!
Por isso mesmo,
minha Maria,
de noite e dia
nessa corrida
triste de ganso,
para descanso
e gozos meus,
só quero a rede
dos olhos teus!
Só quero a rede macia dos teus olhos!
Só quero a doçura de grã-fina do teu beijo…!
Só quero a macieza do teu corpo da cor do ingá…
E na rede eu me deito,
cochilo e descanso,
tenho um sono manso
que me faz sonhar…
Sonho que és ingá
de doçura louca,
que na mina boca
vem se desmanchar,
que na minha boca
vem se desmanchar…
 

O gênio da raça

Eu vi o Gênio da Raça!!!
(Aposto como vocês estão pensando que eu vou
falar de Ruy Barbosa.).
Qual!
O Gênio da Raça que eu vi
foi aquela mulatinha chocolate
fazendo o passo de siricongado
na terça-feira de carnaval!

 

"Oropa, França e Bahia"
(Romance)

Para os 3 Manuéis:
Manuel Bandeira
Manuel de Souza Barros
Manuel Gomes Maranhão
Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,
Que dava fundos prá terra.
("para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").

Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!

Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar…

A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!

— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota, Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!

Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim…

Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"…

— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim…
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!

"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus…"
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.

"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"…
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão…

Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul…
— Ah! Seu Manuel, isso chega…
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.

— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá…"

Maria atirou-se n´água,
Seu Manuel seguiu atrás…
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo…
De "Oropa, França e Bahia"!

Nadavam de mar em fora…
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia…
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!

De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia…
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!

E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?

— continuam mar em fora,
navegando noite e dia…
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!

— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"…

 

Filosofia

(A José Pereira de Araújo – "Doutorzinho de Escada")

Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!

Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!
 

A cavalhada

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis,

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!…

Foguetes do ar…

— "De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!"

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!…
— Andou beirando!…
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

— De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!