Lei de Meios: licenças e financiamento seguem pendentes

A Suprema Corte da Argentina declarou a constitucionalidade de quatro artigos da LSCA (Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual) nesta terça (29). Desde dezembro de 2009, o país espera a resolução definitiva sobre a validade dos artigos 41, 45, 48 e 161 da norma, questionados na justiça pelo Grupo Clarín duas semanas depois da sanção da lei no Congresso. Uma medida cautelar protegia a empresa da obrigação de se desfazer de licenças que excedem o limite estabelecido pela LSCA.

Por Aline Gatto Boueri*, na Opera Mundi
Argentinos celebram em frente ao Congresso, em Buenos Aires, decisão judicial que julgou constitucional a Lei de Meios/ Foto: Efe

A AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), organismo autárquico previsto pela LSCA, decidiu estender o benefício da cautelar a outros grupos de comunicação que não estavam protegidos pela medida provisória, o que dilatou a aplicação dos artigos em litígio. O artigo 41 regula a transferência de licenças, o 48, em seu segundo parágrafo, determina que não se pode alegar “direitos adquiridos” para manter licenças que excedam o limite estipulado pelo artigo 45 – também questionado -, e o artigo 161 estipula o prazo para adequação à LSCA.

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Em sentença de 392 páginas, a instância máxima de justiça do país se baseou na doutrina da CIDH (Corte Interamericana de Diretos Humanos) para diferenciar liberdade de expressão individual e coletiva. O Supremo argentino recorreu também a jurisprudências nacionais e internacionais para fundamentar sua resolução na qual afirma que a liberdade individual deve ser objeto “de mínima regulação estatal”, enquanto a liberdade coletiva “exige uma proteção ativa por parte do Estado.”

Segundo a Corte, a LSCA “é coerente com o direito dos consumidores à informação, o que significa o acesso a distintas fontes plurais” e “promove a liberdade de expressão coletiva, estabelecendo limites iguais a todos os titulares de licenças.”

A Corte reconhece, também, que o Estado pode atuar a posteriori por meio de legislação que regule práticas abusivas e “distorsões – como formações monopólicas ou oligopólicas, abuso de posição dominante etc. – que afetem a pluralidade de vozes” no setor de meios audiovisuais. Porém, admite que outra forma de fazê-lo é por meio de “sanção de normas que a priori organizem e distribuam de maneira equitativa o acesso dos cidadãos aos meios massivos de comunicação.”

Além do Clarín

Sem sequer apresentar um plano de adequação à LSCA, o Grupo Clarín esgotou todas as instâncias judiciais da Argentina em que podia recorrer. A partir desta quarta (30), com os prazos para desprendimento das licenças excedentes esgotados, a empresa deveria começar o processo de transferência e, também segundo o Supremo, deve ser ressarcida pela “ação lícita do Estado.”

No entanto, apesar do foco ter ficado na disputa judicial entre o Estado e o grupo multimídia, o alcance da LSCA supera a questão da desconcentração da propriedade dos meios de comunicação. A regulação do espectro radioelétrico passa também pela distribuição de novas licenças a meios comunitários e cooperativas, com foco especial da regionalização das transmissões.

O artigo 37 da LSCA, por exemplo, limita as transmissões em nível nacional a meios ligados a universidades públicas, povos indígenas ou à Igreja Católica, “pessoas de existência ideal de caráter público.” A Constituição argentina determina que o Estado deve “sustentar o culto católico apostólico romano.”

O governo têm enfrentado críticas — inclusive de quem defende a LSCA — com relação à aplicação efetiva de alguns artigos que não estavam sendo questionados na justiça. Um deles é o 32, que prevê concursos públicos para adjudicação de licenças de rádio de TV.

Segundo Santiago Marino, mestre em Comunicação e Cultura pela UBA (Universidad de Buenos Aires) e especialista em regulação da mídia, o panorama não sofre grandes alterações com a resolução judicial, já que esses meios “não estão envolvidos em nenhum aspecto com a ação movida pelo Grupo Clarín, que é o objeto da sentença”, disse a Opera Mundi. Marino celebra, no entanto, que não haja mais “freios judiciais de nenhum tipo à aplicação da lei.”

O funcionamento do diretório da AFSCA também é objeto de crítica. A oposição reclama que o governo impediu que seus representantes assumam, como determinado pela lei, um posto no órgão e a Comissão Bicameral do Congresso que acompanha as políticas de comunicação atua de maneira tímida.

TV a cabo

Um dos principais argumentos do Grupo Clarín ao mover ação de inconstitucionalidade do artigo 45 era de que a regulação espectro radioelétrico não deveria afetar seus negócios na TV a cabo, recurso infinito. No entanto, no país, o serviço de cabo é indispensável fora da capital e da Grande Buenos Aires para que os telespectadores possam assistir aos canais da TV aberta.

Como empresa com posição dominante no mercado, o Grupo Clarín é acusado de abusar dessa condição e quebrar pequenos operadores que não tinham capacidade de competir com os preços excessivamente baixos operados onde havia concorrência.

Marino acredita que a desconcentração do mercado de TV a cabo não é necessariamente democratizadora. “As pessoas têm acesso aos conteúdos da TV aberta à medida que podem pagar por eles”, lembrou. “É um mercado muito focalizado, com pouco interesse por parte de alguns atores específicos, mas não de um grande operador. Se o Clarín decide se desconcentrar é possível que passe a ser competitivo. Hoje é um mercado fortemente concentrado.”

Sustentabilidade

Em sua defesa durante a audiência pública de agosto deste ano, o Grupo Clarín alegou que a limitação ao número de licenças e a obrigação de se desfazer das que excedessem o estabelecido pela LSCA teria impacto sobre sua rentabilidade, o que comprometeria sua sustentabilidade. A lógica era de que com menos lucro os meios do grupo teriam menor possibilidade de fazer “jornalismo independente.”

Sobre esse aspecto, a Suprema Corte destacou que ainda que exista a possibilidade de que a rentabilidade do Grupo Clarín seja afetada pela redução em suas licenças, o que não implica “comprometer ou pôr em risco a sustentabilidade econômica ou operativa das empresas.” E foi além, ao lembrar ao Estado uma das críticas que o grupo fez durante a audiência pública e que tem eco também em alguns defensores da LSCA: a pauta oficial.

Para a Corte, “a função de garantia da liberdade de expressão que corresponde ao Estado se desvirtua se por meio de subsídios, distribuição de pauta oficial ou qualquer outro benefício os meios de comunicação se convertam em meros instrumentos de apoio de uma corrente política.”
Sobre os meios de comunicação públicos, que na Argentina são governistas, o órgão supremo ponderou que também se desvirtua a função do Estado se “em lugar de dar voz e satisfazer as necessidades de informação de todos os setores da sociedade, [os veículos] se convertam em espaços a serviço de interesses governamentais.”

Marino acredita que a regulação da pauta oficial é necessária, mas não resolve sozinha o problema do financiamento dos meios de comunicação audiovisuais. “É preciso uma bateria de medidas nesse sentido, como o concurso público de fundos estatais, acordos fiscais específicos para meios pequenos e médios, que regulem a carga impositiva de acordo a seu porte, e condições equitativas de acesso a fontes de financiamento.”

As formas de financiamento e a sustentabilidade dos meios de comunicação sem fins de lucro ainda são um debate pendente para o país que conta com a plena vigência, para todos, de uma lei que regula os meios de comunicação.

*é correspondente da Opera Mundi em Buenos Aires