Anne Vigna: Fazer compras em Caracas

Enquanto as penúrias sociais afetam mais, em geral, aqueles que têm menos, na Venezuela parece ser o contrário. Aqui, quanto mais elevada a posição na hierarquia social e mais prateleiras de supermercado se frequenta, menos acesso se tem a produtos de primeira necessidade.

Por Anne Vigna*, no Le Monde Diplomatique

Estação Altamira, bairro chique a leste de Caracas. Alejandra entra no quarto supermercado do dia. Sua mãe acaba de telefonar-lhe para garantir que “nesse, com certeza”, ela encontrará papel higiênico! Não sem acrescentar: “E se encontrar farinha de milho, compre o máximo possível”. O monte de papel higiênico está bem ali, disposto como um troféu no meio da primeira gôndola. “Enfim!”, celebra Alejandra, que imediatamente envia uma mensagem de texto comemorativa à mãe. O preço é quatro vezes mais alto do que deveria pagar normalmente por esse produto, cuja comercialização é regulada pelo Estado. O supermercado está na ilegalidade, mas Alejandra não se importa: enche um carrinho com pacotes de doze rolos, olha rapidamente para a prateleira vazia onde estariam os pacotes de farinha de milho e se dirige ao caixa.

Outros clientes fazem fila para pagar e comentam as mesmas análises: “inflação”, “racionamento”, “desonestidade”.

– Quando a inflação vai parar? – grita um deles. (Segundo o Banco Central venezuelano, a alta dos preços ultrapassou 20% em 2012.)1

– Quando o governo mudar – responde a pessoa ao lado.

– Mudará quando já não houver nada nas prateleiras, o que não deve demorar! – lança uma terceira.

Essa última frase arrancou sorrisos nos demais. Nenhum deles dá qualquer crédito à tese do governo de que os empresários, que controlam a rede de abastecimento de bens de consumo (praticamente todos importados), organizam a penúria para atiçar a cólera popular. A caixa, silenciosa, passa os produtos, entre eles algumas garrafas de uísque e champanhe (3.600 bolívares, ou R$ 1.250,2 o equivalente a seu salário). Durante esse tempo, os clientes reclamam dos cortes regulares de água e eletricidade, que interrompem o funcionamento de seus eletrodomésticos.

Estação Plaza Venezuela, no centro de Caracas, berço da classe média. No Bicentenario, propriedade do Estado desde 2011, encontramos de tudo – ou quase: champanhe não há. Na época de nossa visita, em junho de 2013, as gôndolas transbordavam de papel higiênico e as etiquetas não expressavam um centavo a mais do que o preço regular: 51,56 bolívares a dúzia de rolos, ou R$ 18. Os clientes compram, no máximo, dois pacotes; ninguém enche o carrinho apenas com esse produto. Perguntamos a uma pessoa por que ela não pegava mais. Ela se exalta: “Antes, quando não tínhamos nada para comer, ninguém se importava conosco. Agora, o mundo inteiro se desola por uma suposta falta de papel higiênico!”. De fato, são poucos os veículos da imprensa internacional que não mencionam o tema.

“Tudo bem? Você tem como pagar?”

Estação Agua Salud, no oeste pobre de Caracas, distrito 23 de Enero, um dos grandes bairros populares da capital. Descemos na pirâmide social à medida que também descemos pelos degraus irregulares dessa cidade dentro da cidade construída sobre o flanco de uma colina. Uma longa fila se forma diante do Mercal, um dos supermercados da rede criada pelo Estado em 2003, com produtos subvencionados. Como todos os meses, a distribuição local desafia toda a concorrência. Há diferentes tamanhos do Mercal por todo o país, desde um simples depósito de frutas e legumes até um supermercado de tamanho médio. As lojas não exibem propagandas nem promoções em suas prateleiras. Também não são tão abastecidas como os supermercados comuns: não vendem bebidas alcoólicas e há pouca opção de marcas. Mas encontramos todos os produtos cujos preços são regulados, tanto no âmbito dos alimentos (cereais, carne, laticínios, café) como no de higiene (pasta de dente, xampu, fralda, sabonete).

No Mercal de 23 de Enero, por 200 bolívares (R$ 70), as mulheres – os homens são raridade aqui – enchem uma cesta com frango, arroz, óleo, leite e rolos de papel higiênico. Em geral, elas vêm se abastecer uma vez por mês, às vezes duas. Miriam Maura, encarregada da saúde do bairro, passa pela fila para identificar as famílias em situação difícil. Discretamente, ela interroga alguns clientes: pessoas mais velhas, mas também jovens com crianças. “Tudo bem? Você tem como pagar? Pode falar, não se preocupe”, diz. As mães pagam a conta com vale-alimentação, que, na Venezuela, completa salários e aposentadorias e é aceito em qualquer supermercado. Essas mulheres, portanto, possuem algum trabalho remunerado, a menos que o vale seja do companheiro. “É impossível morrer de fome hoje em dia. Mesmo sem dinheiro, é possível comer”, explica Maura. As cestas já estão preparadas para os que não podem pagar. Gratuitas, são entregues depois de uma entrevista com as assistentes sociais.

“Estou cansado deste socialismo!”

Ao subir em sua 4×4, com o porta-malas cheio de papel higiênico, Alejandra continua deprimida. Agora é o teatro que a preocupa: “Desde Chávez”, explica, o Festival de Teatro de Caracas desapareceu, a cena artística e cultural se degradou e ela não encontra mais livros estrangeiros. “Como em Cuba”, conclui amargamente.

Contudo, a alguns metros do café Venezuela, a Livraria do Sul, rede criada pelo Estado, parece ir bem. Grandes clássicos da literatura latino-americana, poesia, teatro, ensaios políticos. São diversas obras disponíveis aos venezuelanos pelo preço de um café. “Fazem questão de dizer que temos a gasolina mais barata do mundo, mas ninguém menciona que também temos os livros mais baratos”, lembra um dos vendedores. Sim, mas e os livros estrangeiros? “É verdade que as publicações estrangeiras custam caro e são difíceis de encontrar.” Quanto às atividades culturais, como teatro, cinema, shows, elas custam o equivalente a dois cafés, e todos os museus são gratuitos. O Festival de Teatro? Ao buscar mais informação sobre o tema, o espaço onde era organizado foi expropriado para a instalação de uma Universidade Experimental de Artes. O festival reapareceu graças a uma fundação privada e permanece elitizado pelos preços.

“Meus pais não me entendem, mas estou cansado deste socialismo!”, esbraveja Luís, um jovem de 23 anos. “Não dá para comprar nada neste país, há muitas restrições, tudo é muito caro.” Pelas evidências, a situação não convém a todos. Entre os jovens, dos quais 95% possuem um celular,3 a “liberdade de consumo” é, em geral, considerada prioridade, notadamente no seio da classe média. Com seus amigos, recentemente, Luís “enganou o Estado”. Com o pretexto de viajar para o Panamá, compraram divisas do Estado – “US$ 3 mil cada um, uma mina de ouro” – e se dirigiram para os centros comerciais para adquirir aparelhos eletrônicos: “Só podemos comprar dólares uma vez por ano. Recomeçaremos no ano que vem, é um belo negócio”.

“Hoje em dia, a classe média, não necessariamente a classe média alta, viaja. Antes, não podia. Aqui, a vida é bem diferente da imagem que mostram do país”, revela Antonio, que morou na França e tem dois filhos com uma francesa. Ele é jornalista, ela é professora universitária: apesar dos magros salários, a vida da família é mais fácil do que na Europa. “Ganho 6 mil bolívares [R$ 2.100], mas tenho adicionais de 1.000 bolívares para a saúde e 1.200 para a alimentação, um seguro privado e auxílio para pagar a creche. Minha mulher ganha 4 mil bolívares [R$ 1.400], mas também recebe 500 extras por cada filho e vários benefícios sociais. No que se refere às crianças, seja o parto, a creche, a escola ou a saúde, não pagamos nada”, completa.

Na Venezuela, o salário mínimo permanece baixo: 2.700 bolívares (R$ 940),completados por 1.600 bolívares em auxílio-alimentação. Os aluguéis em Caracas chegam a custar entre 1.500 e 2.000 bolívares em média. Com o auxílio-alimentação incluído, um operário especializado ganha cerca de 6 mil bolívares, enquanto um professor ganha 5.200 bolívares. Nos bairros populares, as pessoas não hesitam em dizer quanto ganham, mas, no bairro de Alejandra, elas em geral se recusam. Contudo, “o salário não é o mais importante”, observa um trabalhador da empresa Kraft Food. “O acesso à saúde e à educação, o fato de poder se organizar na fábrica ou no bairro para melhorar nosso cotidiano, é tudo isso que nos faz nos sentirmos bem neste país.”

Então, todos os venezuelanos desgostam da situação do país, como Alejandra? O último “Relatório Mundial sobre o Bem-Estar”,4 da Universidade de Colúmbia, por mais criticável que possa ser, traz um elemento que pode auxiliar na resposta: a Venezuela está na 19a posição entre os 150 países analisados – atrás da Costa Rica (12o e primeiro no continente), mas na frente do México (24o), Brasil (25o) e Argentina (39o).

*Anne Vigna é jornalista