Audifax Rios: Ata da natividade

Por *Audifax Rios

Precisamente aos vinte e cinco dias do mês de dezembro de um remoto ano deste gregoriano calendário, uma estrela rabuda emergiu do horizonte negro e, decidida, tomou o rumo de Belém de Judá, burgo situado no Extremo Oriente, entre dunas, miragens, figueiras, oásis e tamareiras. Naquele momento premonitório nascia, em um estábulo abandonado, o filho do carpinteiro José, da tribo de Davi, e sua companheira Maria de Ana, que, na pia batismal receberia o nome de Jesus. Seria um acontecimento banal, indigno deste oficioso relato, não fossem sinais estranhos que envolveram tal parto a ponto de convergirem para o local, gentes de todos os recantos, tangidas por proclamas de estrelas, galos, cornetas angelicais e outros recursos dos arautos de antanho.

Em verdade vos digo, um anjo alado, louro e rosado como eram retratados os querubins (serafins eram tristemente pálidos), riscou o pano do céu com sua trombeta atordoante, seguindo o rastro de cintilante estrela, nem cadente e nem um bólide artificial (naquele tempo o homem ainda não havia descoberto tais artefatos mirabolantes), traçando, assim, uma nova trajetória para a humanidade. Registram os compêndios especializados que o tal fulgurante astro podia muito bem ser um cometa e, segundo cálculos matemáticos e cronológicos de estudiosos abalizados, o corpo sideral em pauta, certamente, era o mesmo cometa periódico identificado pelo astrônomo Edmund Halley nos idos (ou pósteros) de 1680. A dita estrela caudalosa, além de iluminar os escusos caminhos dos pastores da noite, tirou, destarte, o sono de estadistas continentais que vieram (ou foram), com suas comitivas diplomáticas e assessorias econômicas, fazer uma visita amistosa ao menino coroado, pois corria notícia afirmando ser o robusto garotinho da manjedoura de Belém um rei enviado ao planeta assim, sem protocolo nem atavios palacianos, para mostrar aos terráqueos o valor da simplicidade e da renúncia às cousas mundanas e banais. Mesmo assim os magos, sábios ou adivinhos, portavam ricos presentes para o parceiro, mimos de seus erários, (resina perfumada de myrra, unguento medicinal aplicado em brotoejas; incenso, outra resina aromática extraída de uma árvore da família das timeleáceas; e pepitas de ouro puro e de lei, por todos sabida a maior riqueza da terra) para tornar a noite mais reluzente e perfumada. Historiadores modernos repaginaram o curso do acontecimento e julgaram, à base de fatos circunstanciais, que tais potentados teriam mesmo levado (ou trazido) ao novo rei, amostrinhas de um ouro, preto, o petróleo, em barris carimbados pela OPEP; ouro mesmo dos mais caudalosos veios das minas d’África, ocorridas no cone sul; e letras imobiliárias e ações da bolsa de valores de emergentes emirados.

Os pastores da noite não levaram (ou trouxeram) mais que assustados balidos dos seus cordeirinhos que ainda não eram de Deus, as lãs azuladas de tanto prismar o refulgir dos raios estelares daquele cometa intrometido. E, no fundo do deserto escaldante, os ventos tangiam os brancos grãos d’areia empoando tuaregues e beduínos que, movidos por misteriosa força, rumavam, igualmente, a Belém de Judá para a já propalada adoração ao pequeno monarca. A vaquinha Mascote estava ali a postos, remoendo feixes de capim e resíduos de algodão, pronta a apojar o peito para o primeiro mingau do menino que chorava copiosamente envolto em faixas de seda e arminho, cheirando a sândalo e araruta, corado pelos raios da estrela guia que cada vez mais se aproximava do nascedouro. José apeava o jumento Fiel, carregador de madeira e entregador de encomendas e, ora, transportador de Maria, barriguda, até o conforto e a quentura da estrebaria em pandarecos. De hora em hora o galo cantava do alto da cumeeira e seu canto vagava por aí, modulado pelas ondulações das dunas e das nuvens a endereçar pelos quatro cantos do deserto a alvissareira notícia, soprada pelo siroco, o vento do norte d’África. Verdadeira romaria aconteceu naqueles pagos, com gente humilde, sorridente e esperançosa; e o impacto traduzia solenidade tamanha que nem botaram quebranto nem olho grande e o menino esteve sempre saudável em seus limpinhos panos de bunda, mesmo porque uma legião de mulheres solidárias vieram ajudar a boa Maria, e trocaram fraldas e trataram das assaduras do pimpolho, lhe tomaram no colo e lhe deram o peito.

José, radiante, tratou de reformar o velho estábulo procedendo um remendo aqui, outro acolá e cobria as goteiras para uma eventual intempérie, se bem que os buracos do telhado tinham a oportuna serventia de deixar passar os fios de ouro dos raios da estrela grande.

E eis que chegaram os soberanos e suas concorridas comitivas montadas em camelos ornados de tapetes multicores; vossas majestades empacotadas como nos naipes do baralho, apearam, ajoelharam e se curvaram em vênias e salamaleques exagerados e subservientes ante a novo monarca, oraram as rezas de suas crenças e debulharam os rosários de suas liturgias. Um era alvacento, outro pardo e outro preto, mas todos se deram as mãos esquecendo etnias que muito se estranhavam por aquelas geografias e foram unânimes quanto às preces de paz nesta nesga da galáxia, principalmente por parte daquelas tribos deliberadamente beligerantes.

Enquanto isso, querubins, instruídos pelos arcanjos, ocuparam-se em pintar uma imensa faixa, de pronto afixada à entrada da estalagem que agora resplandecia em laca de nogueira; e no algodão do pano assentaram com letras góticas douradas (parecendo acentuar ainda mais seu conteúdo) uma moção de “Glória a Deus nas Alturas” e um pedido de “Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade”; e isto tocou tão fundo nos corações que a mensagem permaneceu no pórtico de todas as lapinhas do mundo d’ora em diante, pelos séculos dos séculos, amém.

E assim este escriba encerra o relato dos sucessos daquela noite memorável de vinte e cinco de dezembro de um perdido ano, pelo que dá fé e assina em papiros, adobes, pergaminhos, matrizes de mimeógrafos, telas de serigrafia, geringonças gutenberguianas, lâminas de ofessete e pendraives de computadores em todos os caracteres imaginados pelos iluminados artistas gráficos e que resume tudo isto em apenas três letras distintas: PAZ!

Pz, como costumam navegar os internautas do futuro prometido pelo Messias.

*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo

Fonte: O Povo

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