Familiares querem tirar parentes de monumento que abriga Franco
Quando, em outubro de 2003, Fausto Canales acompanhava a escavação da vala que deveria conter os restos mortais de seu pai, não imaginava que os boatos que corriam no povoado de Aldeaseca, nas proximidades da cidade de Ávila, eram verdadeiros.
Por Rafael Duque*, na Opera Mundi
Publicado 23/12/2013 15:21
Segundo se dizia, a vala que abrigava o pai de Canales, além de outros soldados republicanos da guerra civil espanhola (1936-1939), havia sido escavada ainda nos anos 1950 e os corpos dos combatentes levados à Abadia da Santa Cruz do Valle de los Caídos.
Ao se deparar com poucos restos e com indícios de uma escavação anterior, Canales iniciou uma pesquisa que acabou comprovando que o pai foi, efetivamente, levado ao ossuário da abadia em 1959. O local está integrado ao monumento de Valle de los Caídos, construído entre 1940 e 1959 a pedido do ditador Francisco Franco para homenagear os combatentes do grupo nacionalista mortos durante a guerra civil.
Aparentemente, o caso de Canales não é um fato isolado. Meses antes da inauguração do monumento o governo de Franco emitiu uma nota às prefeituras espanholas avisando que o Valle de los Caídos iria abrigar dezenas de milhares de mortos da guerra civil, originários de ambos os lados – a única restrição é que todos deveriam ser cristãos.
“Então, o que ocorreu foi que esse procedimento gerou algumas ocasiões curiosas”, conta o antropólogo e historiador Francisco Ferrándiz, “em alguns municípios, os prefeitos não encontravam corpos do grupo nacional e o que fizeram foi esvaziar as valas republicanas. Tudo isso se fez, obviamente, sem o reconhecimento dos familiares dos republicanos”.

Ainda em 1959, com as obras já terminadas, os restos mortais de José Antonio Primo de Rivera, fundador do partido fascista Falange Espanhola, foram trasladados ao local e enterrados em um lugar de destaque, junto ao altar. Durante todo o regime franquista, corpos de ex-combatentes eram levados ao monumento, que, além da abadia, conta com uma cruz de 150 metros de altura. Até que, em 1975, o Valle de los Caídos foi o local escolhido para abrigar o corpo de Franco, morto em novembro do mesmo ano.
“O monumento do Valle de los Caídos foi e segue sendo dedicado ao franquismo, um monumento que condensa toda a simbologia do franquismo e onde estão enterrados de maneira preferencial o fundador da Falange Espanhola e o ditador que concebeu, desenhou e inaugurou o monumento. Então é surpreendente que exista um monumento assim e que ele siga sendo um local de culto a um ditador”, afirma Ferrándiz.
Canales e outros familiares de republicanos enterrados no Valle de los Caídos entraram na Justiça espanhola em 2008 pedindo para retirar seus antepassados do local. O pedido foi acolhido pelo juiz Baltasar Garzón, mas, quando o Tribunal Supremo espanhol considerou que o magistrado não tinha competência em âmbitos que tocam os crimes do franquismo e da guerra civil, a causa foi arquivada.
Maior cemitério da guerra civil
O ossuário da abadia do Valle de los Caídos contém oficialmente 33.847 pessoas, que entre 1959 e 1983 foram levadas em 491 traslados desde valas e cemitérios situados nas principais províncias espanholas. Apesar dos números, os monges beneditinos que cuidam do local admitem que o total pode chegar a 60 mil, já que muitos corpos foram enterrados juntos e contados como apenas um. “Dentro desse grupo, uns 12 mil não foram identificados e entre eles, há muitos republicanos, mas não sabemos quantos”, explica Ferrándiz.
Além da falta de documentos primários que identifiquem os corpos enterrados no local, a má conservação do monumento levou à degradação dos restos mortais. Um grupo de especialistas reunidos em 2011 a pedido do governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero para analisar o futuro do monumento atestou que, devido às condições de conservação, em alguns casos é impossível identificar os ossos que se encontram na abadia.
Ferrándiz foi um dos integrantes do grupo e explica a situação que encontraram: “há muitíssimos corpos que foram enterrados, alguns deles em caixas individuais e outros, em caixas coletivas de madeira, que em sua maior parte se desfez. Ou seja, um dos problemas fundamentais é o estado físico de deterioração do ossuário da basílica”. O relatório do grupo aponta a necessidade de investir 13 milhões de euros para reformar o monumento e o ossuário.
Traslado de Franco
Além de apontar os problemas de degradação, o grupo de especialista também propôs diversas recomendações para remodelar o Valle de los Caídos, como a criação de um espaço dentro do monumento que lembre as vítimas da repressão pós-guerra. “Pensamos em algo no mesmo estilo dos espaços criados em Berlim para homenagear as vítimas do Holocausto”, diz o antropólogo.
Entretanto a recomendação do grupo que mais gerou repercussão foi o translado dos restos de Franco. “É evidente que um monumento que é presidido por um ditador que durante 37 anos governou a Espanha e é culpado por centenas de milhares de execuções é algo que não pode ser sustentável em uma sociedade democrática”, afirma Ferrándiz. Além da imagem que representa a figura de Franco, o ditador é também o único “hóspede” da abadia que não morreu na guerra civil, outro motivo destacado pelo grupo para defender sua retirada.
Apesar do efeito midiático das recomendações, a troca de governos na Espanha frustrou qualquer tentativa de mudança no Valle de los Caídos e Canales ainda luta para enterrar seu pai longe de seus executores.
*É correspondente da Opera Mundi em Madri