Ano 1929: Quando a Palestina virou um jogo de soma zero

O ano de 1929 tem sido reanalisado por diversos críticos da ocupação israelense sobre a Palestina, e sobre os massacres e expulsões que resultaram – ou que possibilitaram – esta empreitada. Nesta semana, Ran Greenstein, um professor israelense de sociologia na Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, publicou uma resenha do livro “1929: Ano Zero do Conflito Judeu-Árabe”, de Hillal Cohen, na revista eletrônica independente de Israel, +972.

“Depois de 1929, judeus que falavam árabe e tinham vivido em paz e afinidade cultural com companheiros residentes, e judeus ortodoxos que tinham rejeitado o sionismo já não podiam sentir-se a salvo entre seus amigos e vizinhos de outrora. Tiveram de confiar no novo Yishuv [colônia] para protegê-los, a partir de então, e nunca olharam para trás. Introduzindo novas informações e ressaltando fatos esquecidos, um novo livro, de Hillel Cohen, traz contexto fresco aos massacres de 1929 na Palestina [sob Mandato Britânico],” começa Greenstein.

O professor lembra autores críticos e criticados que tentaram recentemente esclarecer um pouco a história do estabelecimento gradual do Estado de Israel, como Benny Morris e Ilan Pappé, acusados de “descuido” e de manterem uma “tendenciosidade política aberta” em seus relatos históricos, desqualificados como trabalhos acadêmicos. “Entretanto, o novo livro de Hillel Cohen […] prova que isso pode ser feito.”

“Seu estilo simples não corresponde a uma análise simplista,” explica, “nem a narrativa fluida é feita à custa da necessidade de se manter baseado em documentos, evidência oral e no uso de ferramentas-padrão essenciais para uma escrita histórica séria.”

De acordo com Greenstein, a relevância do ano de 1929 deve-se aos “distúrbios” – que, ressalta, é o termo oficial – em todo o território, pela primeira vez durante o Mandato Britânico sobre a Palestina – ou seja, o período em que o Reino Unido foi a potência colonial da região – e que incluía ataques massivos que mataram inúmeros judeus, em comunidades que precediam o projeto sionista, ou seja, de colonização dos territórios palestinos à custa da expulsão do povo árabe.

“Na memória coletiva judia-israelense, 1929 fornece a prova cabal de que não há ‘um parceiro’ para um acordo político com os palestinos, que esfaqueariam qualquer judeu – sem consideração por sua história pessoal ou afiliação política – pelas costas, se tivessem meia chance. A noção de que todos os árabes desejam jogar os judeus no mar proverbial tem a sua origem neste ano. Mas, Cohen demonstra em seu livro, este não é muito o impacto de eventos reais e históricos de 1929, mas da forma com que eles foram reconstruídos e representados em discursos políticos e culturais subsequentes.”

Afinal, ressalta Greenstein, todos os eventos históricos são, de alguma maneira, “mediados através da política e da cultura. Nunca chegam a nós em uma forma pura.” O que se aplica, obviamente, aos acontecimentos de 1929, o que teve “papel crucial” para o molde do curso do conflito Israelense-Palestino: “o grau de manipulação política, uso e abuso, foi mais alto do que o usual.”
Segundo o professor, o livro de Cohen tenta contextualizar os eventos, fornecer explicações. No processo, o autor apresenta informações desconhecidas, ou insuficientemente divulgadas. Por exemplo:

“O fato de que árabes envolvidos no evento sentiram-se provocados pelas medidas dos judeus para mudar acordos anteriores sobre o espaço de oração no Muro Ocidental [chamado ‘Muro das Lamentações’, que seria o último resquício do segundo grande Templo judeu, destruído há dois milênios]; que rumores sobre as atrocidades cometidas por judeus contra os árabes fomentaram a ira de insurgentes árabes; que ataques judeus contra árabes que caminhavam em Jerusalém e Tel-Aviv precederam ou coincidiram com os ataques dos árabes; que judeus assassinaram palestinos no curso dos eventos; que muitos residentes palestinos ajudaram seus vizinhos judeus ao enfrentarem os atacantes e impedirem que eles os ferissem; que não existem evidências sólidas de que a liderança palestina – especialmente Hajj Amin al-Husseini, o grande vilão da historiografia sionista – incitou os rebeldes, ou que eles tenham operado segundo sua instrução; que as forças britânicas não facilitaram os ataques e geralmente tentavam pará-los, mas não eram sempre rápidas o suficiente, e por aí vai.”

 

Para Greenstein, a maior parte da evidência apresentada pelo autor não é nova, mas ele escavou provas que ficaram obscurecidas, e as organizou em uma narrativa coerente que dá um panorama sobre os desenvolvimentos em diferentes partes do país, interpretando a história.
 

Além disso, ele tanta entender as características específicas de cada caso, em especial o de Hebron. “Evidências sobre os confrontos entre os judeus novatos – estudantes religiosos americanos – e residentes locais, e as tensões relacionadas com o papel de um banco judeu nas vidas dos camponeses endividados na região dão um contexto para a natureza particularmente cruel da violência naquela cidade, embora, é claro, isso não poderia justificar qualquer dessas coisas.”

   
        Funeral de judeus mortos nos eventos denominados "Massacre de Hebron", em 1929.

Greenstein ressalta a problemática levantada pelo autor sobre a narrativa histórica palestina, que percebe os eventos de 1929 como uma insurreição popular contra o impacto da colonização sionista, e explica a concentração específica em locais e contra comunidades que teriam, supostamente, pouco a ver com o sionismo. Mas o contexto, ressalta o professor, é crucial.

“Em um ambiente inflamado por conflitos religiosos pelo acesso e a posse sobre os locais sagrados, a razão foi substituída pela emoção, e as diferenças entre judeus de diferentes históricos e afiliações tornaram-se opacas,” diz Greenstein.

Embora sejam inúmeros os atores políticos palestinos que reafirmam que o conflito não é religioso – esta é uma manipulação política de sentimentos populares de religiosidade e de história, antagonizados estrategicamente, como em diversas questões pelo mundo, não apenas na Palestina – a percepção dos grupos diretamente envolvidos nos confrontos sobre o fator religioso é importante, ainda que seja fruto da manipulação discursiva.

Greenstein afirma a rara discriminação – que seria positiva, neste caso – dos árabes com relação aos diversos grupos de judeus que acabavam de chegar à região, entre colonizadores e imigrantes recentes, que vinham da Rússia bolchevique, da Argélia, do Iraque, dos Estados Unidos, entre muitos outros locais, e entre si também diferenciados entre grupos políticos e sociais.

Ele ressalta ainda que “os conflitos armados sempre tendem a fortalecer o apoio de membros díspares da comunidade aos seus líderes nacionalistas. De fato, os conflitos criam uma comunidade nacional ao eliminar limites internos e aumentar a solidariedade contra um inimigo externo.” Isso, para voltar à questão do apoio dado por comunidades judias já residentes na Palestina aos novos colonizadores.

“A consolidação da unidade judia foi refletida pelo reconhecimento crescente entre os palestinos de que o destino do país inteiro estava em jogo, e que apenas uma luta resoluta poderia permitir-lhes salvar a sua pátria. Isso abriu o caminho à greve nacional de 1936, à Revolta Árabe de 1936-1939 e, à sua vez, levou também à crescente militarização das comunidades judias.”

Para Greenstein, o resultado foi a interpretação do conflito em termos mutuamente exclusivos, “eventualmente levando ao clímax de 1948, com a criação de Israel e a Nakba [catástrofe] palestina.”

   
      Refugiados palestinos durante a guerra de 1948: Nakba, a Catástrofe, no conflito que forçou 85% dos palestinos
        a abandonarem seus lares e vilas.

Segundo Cohen – que faz paralelos entre este evento dramático e certamente definitivo para o posicionamento atual dos palestinos contra a ocupação e os crimes de guerra dos quais são vítimas cotidianamente –, os acontecimentos de 1929 “determinaram” as ações futuras dos líderes militares de 1948, que eram crianças naquela altura, e que tiveram a história das suas famílias moldadas em torno daquele episódio. Ele cita como exemplo Mordechai Maklef e Israel Tal, que tiveram papeis relevantes nas ações militares que expulsaram milhares de palestinos das suas casas e vilas, em 1948.

É neste sentido que perde força, ao longo do tempo, a proposta política de um Estado binacional, idealizado até mesmo pelo intelectual palestino de grande influência internacional, Edward Said. As condições para tal foram gradualmente eliminadas pelo discurso político e cultural, como ele mesmo reconhece, exatamente através do uso e da manipulação de eventos históricos de grande peso, como o de 1929, transformados na causa judia e na vitimização sistemática pelos líderes políticos e religiosos com o fim único de antagonizar o seu próprio povo contra os árabes.

Em março de 2013, o próprio Coehen havia publicado um artigo em que afirmava que os eventos de 1929 foram responsáveis pelo fortalecimento do movimento sionista, quando ficou patente que os árabes e muçulmanos "são sedentos de sangue judeu", ideário afirmado graças à ocultação dos detalhes que introduziram esta matéria, de fatos históricos e de uma interpretação do contexto determinantes, que colocariam em risco a construção do antagonismo e da colonização sionista da Palestina.

O livro de Cohen, publicado pela editora Keter, em 2013, ainda não tem tradução para o português, e é intitulado, em inglês, “1929: Year Zero of the Jewish-Arab Conflict”.

Por Moara Crivelente, da redação do Vermelho
Com a revista eletrônica israelense e indepentende +972