A revolução conservadora no Paraguai

Horacio Cartes e o Partido Colorado não são iniciantes e aprenderam com o falido governo de Fernando Lugo que os vacilos e as omissões podem custar caro. Por isso, apesar de impulsionarem uma política liberal conservadora, ambos o fazem com uma aparência revolucionária e moderna.

Por Henrique Ferreira Bueno*, no Le Monde Diplomatique

Paraguai tem vivenciado uma série de protestos desde o ano passado

Horacio Cartes, presidente da República do Paraguai, ao cumprir seus primeiros cem dias de governo, conta com uma grande legitimidade sustentada, primeiramente, pela clara vitória nas eleições gerais e, em segundo lugar, por uma boa estratégia político-comunicacional.

Em novembro, meios de comunicação impressos de circulação nacional publicaram pesquisas que mostram o alto nível de aceitação do Poder Executivo. O mesmo não acontece com o Legislativo, atualmente alvo de críticas e mobilizações por parte da sociedade civil.

Com o retumbante slogan de nuevo rumbo [novo rumo], o velho Partido Colorado (Associação Nacional Republicana – ANR) toma o poder mais uma vez, sem uma renovação substancial de seus dirigentes. Assim, o novo governo não oferece um “rumo novo”, e sim um “rumo claro”: seguem firmes e decididos em direção à revolução conservadora, ou seja, mais do mesmo, mas com novas ferramentas.

Horacio Cartes e o Partido Colorado não são iniciantes e aprenderam com o falido governo de Fernando Lugo que os vacilos e as omissões podem custar caro. Por isso, apesar de impulsionarem uma política liberal conservadora, ambos imprimem a ela uma aparência revolucionária e moderna.

O presidente Cartes entende que necessita realizar mudanças nas leis para levar adiante seu projeto: a revolução conservadora. E assim o faz, aproveitando a correlação de forças favoráveis no Congresso e a rejeição que os legisladores sofrem da sociedade civil atualmente.

De forma rápida e furiosa, ele conseguiu a aprovação de modificações legislativas importantes. E o Poder Executivo ganhou mais poderes em relação ao Legislativo.

Com a “Lei de Defesa Nacional e Soberania Nacional”, o Executivo obteve poder direto para usar o Exército quando o presidente julgar necessário. Poderíamos dizer que, hoje, o país encontra-se em um estado de exceção latente e à mercê da vontade do Executivo. Agora, Cartes pode utilizar a lei para se proteger, em caso de eventuais convulsões sociais causadas pelas políticas do governo que se chocam com os interesses populares.

A segunda lei aprovada é conhecida como “da Aliança Público-Privada” e permite ao Executivo formalizar associações entre as empresas públicas e o setor privado mediante “concessão”, sem necessidade de aprovação do Congresso. A terceira lei provada nesse contexto é a “da Responsabilidade Fiscal”, que permite ao Executivo estabelecer tetos para os gastos públicos. Antes, a última palavra sobre a questão orçamentária era do Congresso.

Os setores de esquerda, principalmente, questionam o teto para os gastos sociais e reivindicam do Executivo políticas para aumentar as receitas, como a criação de impostos – sobre a produção de grãos, por exemplo –, em vez de realizar cortes.

Atualmente, o Executivo prepara uma quarta lei, ainda em projeto: a “de Proteção aos Investimentos Financeiros”. O projeto de lei foi anunciado logo após uma reunião do presidente com membros da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) brasileira, com o principal objetivo de oferecer garantias aos investidores privados.

O jogo rápido do Executivo pegou desprevenidos os movimentos e as organizações sociais, os sindicatos, cujas direções parecem estar sem reação, e os partidos de esquerda e progressistas, ainda divididos e rancorosos após as eleições gerais de abril.

Cartes, valendo-se da correlação de forças favorável no Congresso Nacional – onde é apoiado tanto pelo Partido Colorado quanto por diversos membros do Partido Liberal (histórico opositor do Partido Colorado) –, consegue concentrar poderes e modificar substancialmente o desenho da Constituição.

Outro fato claro, que indica as prioridades do governo Cartes, é o posicionamento a respeito da política impositiva. Quando foi debatida no Congresso a lei que estabelecia por um lado 10% do imposto sobre os grãos para exportação em estado natural e, por outro, taxas sobre os lucros (esse imposto corre o risco de ter menos controle pelo aparelho estatal, pois seria deduzido do lucro informado pelo empresário), o Executivo obrigou que se aprovassem o controle menor e o imposto mais baixo, beneficiando os grupos mais poderosos do setor agrícola.

Assim, dão-se as condições para acelerar as políticas que tendem a favorecer os velhos setores do poder político-econômico do Paraguai, e – até agora – a política dirigida aos setores menos favorecidos economicamente é quase nula.

Primavera cidadã

Enquanto o Executivo na mão de Cartes e do Partido Colorado coloca em prática seus planos de desenvolvimento do novo liberalismo no Paraguai, paralelamente a artilharia de críticas e questionamentos por parte da sociedade civil, meios de comunicação e empresários recai sobre o Legislativo.

A aprazível, e para alguns apática, vida dos cidadãos paraguaios hoje sofre uma reviravolta inesperada. As jornadas de mobilização dos “cidadãos indignados” rompem a rotina e surpreendem eles mesmos e outros países. Nenhum paraguaio em sã consciência poderia esperar o que estão experimentando hoje: mobilizações, protestos, lojas que fecham as portas a políticos questionados e pessoas gritando pelas ruas em repúdio à classe política. Longe da vida serena e calma, hoje os cidadãos paraguaios tomam as ruas com criatividade, protestando principalmente contra os parlamentares.

Há muitas tentativas de explicação para esse fenômeno de Primavera cidadã que se vive hoje no Paraguai, mas até agora ninguém sabe dizer com certeza o que está por trás dos gritos indignados nem qual será seu futuro. O certo é que se trata de uma bola de neve que está rolando e ganhando corpo.

Concretamente, as manifestações e os repúdios deixaram de ter o rosto da esquerda – rejeitada pela ideologia dominante – para vestir-se de sociedade civil, aceita socialmente e apoiada por meios de comunicação e empresários. Com a adesão dos empresários do setor gastronômico e do entretenimento, os protestos passaram inclusive a ser uma moda social. O que chama a atenção é que o repúdio da sociedade civil não alcança o Executivo, apenas se volta contra o Legislativo, pelo menos até o momento.

Mobilizações espontâneas

As vozes de protesto contra o Congresso Nacional ganharam impulso nesse novo período legislativo com uma forte campanha dos meios empresariais pressionando para que os órgãos públicos divulguem sua lista de funcionários com seus respectivos salários. As instituições públicas finalmente o fizeram, e a lupa midiática consagrou-se a encontrar familiares ou pessoas próximas aos congressistas. Por fim, o senador colorado Victor Bogado foi processado após denúncia de um caso de salário extraordinariamente alto de uma funcionária próxima. Além disso, suspeita-se que essa pessoa, que recebe vencimentos da Câmara dos Deputados e da Entidade Binacional de Itaipu, na realidade desempenha a função de babá para o mencionado senador. Entretanto, a Câmara dos Senadores negou o pedido de abertura do processo contra este, provocando manifestações encampadas pela classe média, embora setores populares paulatinamente se somassem aos protestos.

O singular dessa situação é que estabelecimentos comerciais iniciaram uma campanha de proibição de acesso a senadores que votaram contra o processo, como uma clínica de reabilitação de propriedade do círculo empresarial de Cartes e outras empresas de propriedade de representantes dos setores mais enriquecidos e beneficiados pela estrutura socioeconômica paraguaia.

A Igreja Católica também condenou a atitude corporativa dos senadores. As mobilizações ainda contam com o apoio da Associação Rural do Paraguai (ARP), que agrupa os fazendeiros mais ricos do país e historicamente sempre receberam apoio dos congressistas.

Uma característica importante dessa mobilização é o discurso antipartidário, uma necessidade de expressar sua horizontalidade enquanto organização. Isso quer dizer que não há uma organização convocante, é a sociedade civil que convoca.

A preocupação latente nos setores progressistas é que ocorra o mesmo que aconteceu com a Primavera Árabe: que tudo mude para que nada mude, ou para que voltem os fantasmas do passado.

Breve apanhado da história política do Paraguai

A história da organização política paraguaia remonta ao ano de 1887, com a fundação dos partidos políticos que até hoje dominam o cenário: o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) e o Partido Colorado (Associação Nacional Republicana – ANR). Ambos dividiram a tutela do Estado ao longo do século 20, com um pequeno parêntese entre o ano de 1936 e 1937, quando, logo após a Guerra do Chaco, em fevereiro, forças heterogêneas formadas por comunistas e simpatizantes do fascismo, comandadas pelo coronel Rafael Franco, terminaram com hegemonia liberal. Isso se chamou Revolução Febrerista.

Entre 1937 e 1945, sucederam-se governos de baixa legitimidade e sucessivas crises sob o governo do protecionismo militar, que finalmente desembocaram em uma guerra civil em 1947, da qual saiu vitorioso o Partido Colorado. Este, por sua vez, com o auxílio das Forças Armadas, colocou no poder, em 1954, o general Alfredo Stroessner. Abria-se então um período de revolução econômica e obscurantismo social: uma ditadura sustentada pelas Forças Armadas e o Partido Colorado.

Quando Stroessner, a partir dos anos 1980, quis governar sem o partido que o apoiou, este o tirou do poder, mas a operação cirúrgica foi realizada pelas próprias Forças Armadas. Assim foi a “transição à democracia” no Paraguai, período cuja força política predominante continuou sendo o próprio Partido Colorado. (H.F.B.)

A Queda de Lugo

Em 2008, chegou ao poder como presidente da República o ex-bispo Fernando Lugo, apoiado pelo Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) e por forças progressistas e de esquerda, na coligação Aliança Patriótica para a Transformação. Terminava assim um período de longa hegemonia do Partido Colorado.

Pode-se dizer que a alternância política se deu pela conjunção de uma série de elementos conjunturais, mas não estava sustentada em uma estrutura política forte. Nesse momento, o sentimento que uniu imensas camadas da sociedade na aposta na Aliança, nesse caso representada por Lugo, foi o cansaço em relação ao Partido Colorado, que não conseguiu solucionar problemas sociais relacionados a saúde, educação e moradia. O ex-bispo conseguira a vitória em parte pela rejeição social ao coloradismo.

A conformação do gabinete do Executivo sempre representou um problema e, embora Lugo tenha chegado ao poder sob o signo de “mudança”, isso não quis dizer que a base de sua sustentação política estivesse isenta de vícios próprios dos partidos tradicionais.

O PLRA necessitava ocupar cargos públicos para sustentar a fidelidade de sua base governista. Assim, propina e o clientelismo representavam uma trava para o desenvolvimento de políticas dirigidas aos setores populares.

Em 2012, finalmente Lugo e as forças de esquerda e progressistas que o apoiaram caíram pela decisão do PLRA (parte da base da vitória da Aliança Patriótica para a Transformação) de apoiar o juízo político.

Algo similar ocorreu em nosso país em 1937, com o governo do Partido Febrerista, que terminou após um golpe levado a cabo por facções das Forças Armadas (as mesmas que colaboraram para derrubar o Partido Liberal e levar o Febrerismo ao poder).

Como disse Marx no 18 de brumário, a história se repete duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Aqui acrescentaríamos que a história se repetiu como “comédia”.

O juízo político teve como resultado uma crônica anunciada da destituição de Fernando Lugo como presidente da República, com apenas três votos contra.

Os componentes dessa comédia, contudo, não estão entre os atores que realizaram o juízo, e sim entre suas vítimas, segundo a análise sobre a queda de Lugo feita pelo sociólogo norte-americano James Petras. Ao ser questionado sobre a suposta mão do imperialismo norte-americano na derrocada do ex-presidente, Petras respondeu: “Apesar de os governos progressistas sustentarem essa tese, Lugo caiu pelo peso das condições criadas por ele mesmo”.

O argumento de Petras faz sentido se observadas as ações do governo Lugo, que, ao assumir em 2008, tinha grande popularidade e legitimidade para chamar a população para uma Constituinte e modificar as regras do jogo. Não o fez. Era necessário criar uma base de apoio político transversal aos partidos para sustentar as políticas populares. Tampouco o fez, deixando a iniciativa na inércia. Deveria ter realizado pactos pragmáticos com as facções do poder. Nada. Assim, quando se realizou o juízo político e as massas populares foram chamadas para defender o governo, elas obviamente optaram por ficar em casa – porque não haviam sido chamadas antes. Ou seja, já era tarde quando o governo convocou o apoio popular para tentar realizar pactos com as facções no poder para frear o juízo político.

A cortina da comédia cai com a frase “saio pela porta da frente”, proferida pelo ex-bispo e ex-presidente Fernando Lugo.(H.F.B.)

*é secretário de Relações Internacionais do Partido do Movimento ao Socialismo do Paraguai.