Farc: um relato de Sandra, viúva do líder histórico Marulanda
Acho-a nervosa. É a primeira vez que concede uma entrevista. Encontro-a em Havana. É uma das 13 mulheres que integram o grupo de 30 pessoas que por parte das Forças Armadas Revolucionarias de Colômbia, (Farc) negociam com o governo colombiano um possível – e desejado – processo de paz.
Por Hernando Calvo Espina*
Publicado 17/01/2014 15:44

Com a sua grande simplicidade, ainda que de uma elegância natural, faz parte dos 40% de mulheres combatentes. Acompanha as suas palavras com o movimento das mãos e o brilho dos seus olhos negros. Chama-se Sandra Ramírez, é a viúva do líder histórico da organização guerrilheira, Manuel Marulanda Vélez.
Perante as minhas duas primeiras perguntas, responde como se estivesse a fazer um discurso. Paro o gravador para lhe recordar que não faço uma entrevista: quero conversar com ela. Então sorri e coloca os olhos em algum longínquo lugar, começa com as suas recordações e com o seu presente.
“Por volta de 1981 começaram a passar guerrilheiros na região camponesa onde vivia com a minha família. O meu pai servia-lhes de guia para que conhecessem a região. A mim chamou-me muito a atenção que o comando fosse assumido por uma mulher. Devido às condições econômicas não pude prosseguir os meus estudos secundários, e como essa mulher se convertido numa referência para mim, decidi ingressar nas Farc”.
“Constatei que não existia diferença entre homens e mulheres para participar no combate. Também me chamou a atenção que se estivesse em luta contra o machismo e pela igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres. O que não era fácil, tendo em conta que a maioria de combatentes é do campo, onde o machismo é mais acentuado.”
Amor e feminilidade
“Uma mulher nas Farc cumpre missões e exerce o comando, porque desde que ingressa é educada para que tome consciência da sua condição de pessoa e de combatente”. Aqui uma mulher pode preparar-se em informática, meios de comunicação, para ser médica, enfermeira ou em qualquer das especialidades que temos. Aqui a mulher opina e propõe, pois as decisões nas Farc são tomadas de forma coletiva.
“Claro, não gostamos de perder a feminilidade”. Por isso a organização facilita-nos mensalmente, quando as condições da guerra e as economias o permitem, creme para o corpo, esmalte para as unhas, para maquilar-nos, para além de pensos higiênicos e os contraceptivos. Não é raro irmos para frente de combate perfumadas e com o cabelo bem penteado.
“As relações dos casais são tão normais como em Bogotá ou Madrid. A propaganda mediática do inimigo diz que as guerrilheiras são obrigadas a estar sexualmente com os companheiros. Isso é mentira. Nós decidimos livremente estar com um companheiro se gostamos dele. Aqui as pessoas enamoram-se, desenamoram-se e têm decepções, como em toda a parte do mundo”.
“Para nós o controle de natalidade é obrigatório. Não se pode ser guerrilheira e mãe. Quando ingressamos aceitamos esta condição. Não se esqueça de que nós somos parte de um exército. Quando se dá uma gravidez, a guerrilheira pode escolher entre abortar ou sair e ter o seu filho.
“O inimigo subestima-nos por sermos mulheres, mas também nos teme. Em regra, quando capturam companheiras violam-nas, torturam-nas e chegaram até a cortar-lhes os seios, a mutilá-las. Temos tido casos atrozes. Tratam-nos como despojos de guerra. Temem-nos porque os enfrentamos de igual para igual, demostrando que podemos ser muito aguerridas em combate. Por isso ao capturar uma camarada descarregam sobre nós o seu medo, raiva e impotência”.
Chegou o momento de lhe fazer a última pergunta. Quando a escutou a voz mudou-se, formou-se um nó na garganta e olhou para o chão ao mesmo tempo em que juntava as mãos. Respirou fundo e respondeu, sem que lhe faltassem sorrisos travessos em vários momentos do seu relato.
“Em 1983, tinha eu 20 anos, quando no acampamento vi um senhor com chapéu de abas, revolver à cintura, uma carabina e sem uniforme”. Então perguntei quem era. Fiquei assombrada. O camarada Marulanda era a pessoa mais simples que você possa imaginar. Ele não deixava sentir que era o chefe, éramos nós quem víamos nele a autoridade.
“Por volta de Maio de 1984 coube-me integrar o grupo de apoio que recebia as comissões, políticos, jornalistas e outras pessoas que vinham ao acampamento de La Uribe para discutir sobre os acordos de paz que se estavam a ser entabulados com o governo”. Um dia o camarada teve um acidente e fissurou uma costela. Como enfermeira cabia-me ministrar-lhe os remédios e fazer-lhe a terapia. E no decurso do tratamento começou a nossa relação afetiva.
“Vivi com ele uma relação absolutamente normal”. Eu não tinha privilégios por ser sua companheira, mas ele sim era muito especial comigo. Tínhamos discussões e dificuldades como todos os casais, mas foram muitas mais as alegrias.
“Por vezes tínhamos situações muito difíceis de segurança próprias da guerra, e porque ele era o homem mais procurado do país”. Muitas vezes tivemos o exército bem próximo, mas ele, com a sua calma e experiência, sempre soube resguardar a sua tropa. Era muito precavido e planificava tudo. Ríamo-nos quando ouvíamos que o tinham matado e nós tomando café. Porque o mataram muitas vezes.
“As minhas últimas horas com ele? Ainda tenho dificuldade em falar desta parte da nossa vida em comum. Mas enfim… Pelos sintomas críamos que tinha um problema de gastrite. E nesse dia (26 de Março de 2008) tinha estado a escrever um documento, enquanto escutava ‘cumbias’ colombianas. Depois o acompanhei para que tomasse uma ducha, tomou chocolate e julgámos que o problema estava superado. Às cinco da tarde jantou o ‘pouquito’ como era de seu costume. Uma hora depois recebeu os relatórios da guarda e deu orientações. Depois me pediu que o acompanhasse ao sanitário. Eu segurei o machete e o cinto com a pistola, pertences que nunca abandonava. Então me disse que se sentia agoniado. Vi que ia tombar. Então o segurei, começando a chamar os que estavam de guarda. O camarada caiu. É terrível ver assim quem foi tão forte. Levámo-lo para a cama e fizemos-lhe massagens cardíacas e respiração, mas não foi possível reanimá-lo. Foi tudo tão inesperado. Não sofreu: até nisso o inimigo perdeu. Nem essa satisfação lhe deu. Eu senti-me triste, só e desamparada, embora toda a organização estivesse comigo.”
*Jornalista colombiano residente na França. Colaborador de Le Monde Diplomatique