Antonio Martins: o notável exemplo da economia boliviana
Além de rechaçar políticas do FMI, a Bolívia reformas estruturais e evitou concessões a grandes empresas. Tal sucesso revela como são frágeis ideias conservadoras que dominam o debate brasileiro.
Por Antonio Martins*, no Outras Palavras
Publicado 20/02/2014 15:25

Uma vasta onda de conservadorismo econômico varre o Brasil. Neste exato instante, por exemplo, o ministro da Fazenda Guido Mantega batalha por um amplo corte no Orçamento da União para 2014. Reduzir investimentos públicos é, pensa ele, indispensável para “tranquilizar os mercados”, sinalizando que o governo Dilma não adotará políticas que os afetem e recuperando sua “confiança“. Entre os adversários mais fortes da presidenta, o cenário é ainda mais devastador. Aécio Neves prega o retorno puro e simples às políticas neoliberais. Eduardo Campos e Marina Silva cercam-se, informa o Valor Econômico, dos principais assessores econômicos de FHC. Preveem, se eleitos, ampliar as concessões que o Executivo faz, há meses, ao mundo das grandes finanças. Não há saída, todos parecem calcular: num mundo em que a crise agrava-se, a única opção de governantes prudentes seria evitar ousadias, não confrontar o grande poder econômico, esperar que passem os tempos de vacas magras. Será verdade?
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Uma reportagem na edição desta quarta-feira (19) do New York Times sugere desconfiar deste consenso. Trata de um país cuja força para resistir às pressões dos mercados financeiros é, em teoria, incomparavelmente mais reduzida que a do Brasil: a frágil Bolívia, com PIB (US$ 50 bilhões) cerca de 46 vezes inferior ao nosso. Traz revelações surpreendentes. A economia boliviana cresceu 6,5% no ano passado — uma das taxas mais altas do mundo. As reservas internacionais em moedas fortes são, proporcionalmente, quase duas vezes superiores às brasileiras. A dívida pública cai a cada ano. Tudo isso foi alcançado com medidas opostas às esboçadas pelos candidatos brasileiros.
O New York Times não nutre simpatias por Evo Morales, mas o texto reconhece, com honestidade: tais êxitos foram alcançados porque seu governo “abandonou as recomendações do FMI e de outras grandes fontes de financiamento”. Em três sentidos, pelo menos.
Primeiro, inverteu-se a submissão automática aos mercados. Nos anos 1990, a Bolívia tornara-se conhecida por aceitar a condição de laboratório das políticas neoliberais. Em nome do combate à inflação, houve cortes maciços de programas sociais, fim de subsídios a bens essenciais, privatizações, demissões em massa. Tentou-se a privatização das fontes de água (em Cochabamba) e das reservas de gás. Produziu-se desigualdade, marginalização, instabilidade política, e as revoltas que levaram Evo ao poder.
Iniciado em 2006, seu governo lançou políticas ousadas de redistribuição de renda — em especial, aumento das aposentadorias e uma versão local do Bolsa Família. O percentual da população vivendo em extrema pobreza caiu de 38% para 24%, em seis anos. El Alto, subúrbio proletário e rebelde de La Paz, é marcado hoje, continua a reportagem, pela reforma febril das casas populares e pela multiplicação de padarias mais ou menos refinadas. No campo, as comunidades camponesas começam a substituir o arado puxado por animais por tratores.
A estes fenômenos, que também podem ser observado em algumas periferias brasileiras ou no interior do Nordeste, o governo boliviano somou reformas econômicas de fundo. A exploração do gás — principal produto de exportação — foi renacionalizada em 2006. A alta das cotações internacionais do produto não encheu os bolsos de poucos proprietários privados (como ocorre com o agronegócio e as mineradoras, no Brasil). Ajudou, ao contrário a ampliar os programas sociais, os investimentos de infra-estrutura, a geração de ocupações. Em novembro do ano passado, Evo apoiou-se nesta alta para instituir um 14º salário para os servidores públicos e parte dos trabalhadores privados.
Por fim, não houve (ao contrário do Brasil) concessões fiscais a grandes grupos econômicos. Ao contrário. As tentativas de desinvestimento, por parte do empresariado, foram enfrentadas com a nacionalização de pelo menos vinte companhias, numa série de setores econômicos.
Os resultados positivos impressionam os próprios representantes de instituições antes hostis. “A oportunidade [aberta pela alta dos preços do gás] poderia ter sido desperdiçada, mas a realidade é que não foi”, disse ao New York Times o representante do Banco Mundial na Bolívia, Faris Hadad Zarvos. Seus superiores na hierarquia da instituição parecem reconhecer o sucesso.
Em dezembro de 2012, Evo Morales propôs o desmantelamento “do sistema financeiro internacional e de seus satélites, o FMI e o Banco Mundial”. Seis meses depois, o novo presidente do banco, Jim Young Kim, não se incomodou a jogar uma partida de futebol com o próprio presidente, para celebrar o reatamento das relações entre as duas partes.
*é jornalista