Tapajós: Não éramos apenas artistas, éramos militantes políticos

Há 50 anos, no dia 13 de março de 1964, a sala do grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, capital paulista, estava lotada. Os estudantes projetavam o filme “Cinco vezes Favela” e mantinham-se atentos ao rádio que trazia notícias do Comício pelas Reformas de Base, comandado pelo presidente João Goulart, o Jango, na Central do Brasil, no Rio.

Blog do Zé Dirceu

Renato Tapajós - Reprodução

À frente da exibição, encontrava-se um jovem de 21 anos, Renato Tapajós, atualmente, uma das principais referências na produção cinematográfica de documentários sobre o período.

“Parecia que nada poderia deter a transformação do país, a concretização do projeto de nação que era, naquele momento, representado pelo Governo Jango”, conta Tapajós sobre aquele dia, em entrevista exclusiva ao nosso blog. Envolvido no movimento estudantil e, na sequência, na luta contra a ditatura militar, ele fala sobre as relações entre a arte e a militância, o papel da universidade e o “oásis” que significava a rua Maria Antônia.

Lembra também de sua experiência na prisão e do primeiro romance publicado sobre a luta contra a ditadura no período, “Em Câmara Aberta”, escrito por ele em papel de seda, dobrado infinitamente e protegido por um durex, como uma pílula, que sua mãe escondia debaixo da língua após visitá-lo no presídio.

Tapajós é diretor de documentários fundamentais para o entendimento dos anos da ditatura como “Universidade em Crise”, “Em Nome da Segurança Nacional”, “No Olho do Furacão”, “A Luta do Povo”, “Nada Será como Antes. Nada?” , “Linha de Montagem”, “O Rosto no Espelho” e o mais recente, “A Batalha da Maria Antônia”.

Acompanhem a entrevista:

Renato, onde você estava no dia 13 de março de 1964, dia do comício da Central, considerado o divisor de águas da conspiração? A partir dali, alguns continuaram apostando que Jango sobrevivia e outros entregaram os pontos, acharam que era um governo morto, não é? E o que você se lembra daquele 1º de abril de 1964, dia do golpe?

No começo dos anos 60, eu entrei para a Escola Politécnica da USP e cursei dois anos de Engenharia antes de concluir que não tinha nada a ver com aquilo. No começo de 1964, fiz vestibular para Ciências Sociais e entrei para aquele mundo paralelo que era a rua Maria Antônia.

Eu tinha 21 anos. A efervescência política do período, naquele universo politizado ao extremo me envolveu imediatamente e, ainda calouro, fui indicado pelo Grêmio da Filosofia para cuidar da programação de Cinema do Grêmio. No dia 13 de março, dia do comício da Central, nós estávamos projetando “Cinco vezes Favela” naquele porão que era a sede do Grêmio. Casa cheia, todo mundo ligado nas notícias do rádio sobre o comício. O clima era de entusiasmo. Parecia que nada poderia deter a transformação do país, a concretização do projeto de nação que era, naquele momento, representado pelo Governo Jango.

Eu tinha muitos amigos na Escola Politécnica e eles me convidaram para participar de um evento teatral que seria feito para receber os calouros da Poli, no teatro TAIB (Teatro da Associação Israelita-Brasileira), perto da Velha Poli. A data prevista era 31 de março. Portanto, no dia 31, ainda sem saber de nada, subi ao palco do TAIB para declamar um poema de minha autoria, que era uma ode à breve chegada da revolução socialista e uma saudação aos comunistas.

Só depois do evento é que ficamos sabendo dos rumores de movimentação de tropas em Minas. Passamos a noite em claro, tentando saber de algo. Na manhã do dia 1º de abril voltamos ao Grêmio da Filosofia. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) já tinha feito uma primeira incursão na calada da noite. Lembro de encontrar o Grêmio destruído, o projetor quebrado e jogado no chão, os filmes fora das bobinas espalhados pela sala, onde os bancos e mesas estavam quebrados.

Como você entrou para o movimento estudantil?

Ainda na Poli eu já havia me aproximado do Movimento Estudantil (ME), pela via da atividade cultural. Entre outras coisas, eu participava de um grupo de cinema que se identificava como Grupo Kuatro. Dele participavam diversos outros estudantes, entre os quais o Francisco Ramalho e o João Batista de Andrade. Quando fui para a Ciências Sociais na Maria Antonia, já estava plenamente envolvido no ME.

O golpe de 64 radicalizou minhas atitudes. Era preciso ir além da cultura e participar diretamente da política. Desse primeiro momento, lembro que conseguimos fazer uma passeata, ainda naqueles primeiros dias do golpe. A polícia do Adhemar de Barros, então Governador de São Paulo, nos cercou na Av. Liberdade e desceu o cacete. Por sorte, consegui não ser preso.

O que era a Maria Antônia e a universidade naquele momento, tanto em termos de ensino, como de transformações comportamentais?

Como digo em meu documentário “A Batalha da Maria Antonia”, a rua Maria Antonia era um oásis em meio ao deserto repressivo da ditadura. Ali, onde entre os professores já se reuniam as melhores cabeças do país, os estudantes conseguiram manter um espaço de liberdade, onde se discutia tudo e se planejava tudo, onde teoria e prática andavam de mãos dadas, onde qualquer ideia política – desde que de esquerda e contra a ditadura – podia viscejar. Aquilo devia incomodar muito a direita que arrotava vitória no golpe e os militares. É notável que isso tenha sobrevivido até 1968.

O que os professores ensinavam ali era uma visão de mundo e do Brasil que nada tinha a ver com a proposta da ditadura. E os estudantes discutiam aquelas ideias e iam além. Ali existia o que havia de melhor na Universidade brasileira anterior ao golpe. Ali se procurava construir uma Universidade crítica. (Confiram abaixo o trailer de “A Batalha da Maria Antônia”)

Qual a pior herança do golpe militar de 64 e da ditadura?

Acredito que uma das piores heranças do golpe de 64 foi a destruição daquela Universidade, daquele projeto de ensino, e sua substituição pelo modelo que perdura até hoje, a de uma Universidade abastardada e voltada para a produção de mão de obra para as grandes empresas capitalistas.

Como se dava a relação entre arte e práxis política?

A maioria dos jovens artistas que estavam produzindo naquele período se engajou, de uma forma ou de outra, na resistência à ditadura. Não éramos apenas artistas, éramos militantes políticos. Além de organizar mostras de filmes para os estudantes, de fazer filmes para o Movimento Estudantil, eu era um militante político, participando de tarefas de organização, de mobilização e de propaganda, não só junto ao movimento estudantil mas também junto aos grupos operários que sobreviveram ao desmantelamento realizado pelo golpe.

Cada filme, cada peça de teatro, cada show de música, cada poema escrito visava interferir na luta, na formação da consciência do público, na propaganda política que não podia mais ser feita na imprensa, na televisão ou no rádio. A propaganda da resistência alimentou uma arte que falava por metáforas e caminhava cada vez mais para ser subterrânea, clandestina.

Creio que a grande diferença entre aquele momento e o momento de hoje é que, lá, nós tínhamos um projeto de nação, um projeto coletivo e que era aceito por muita gente. Era esse projeto que animava nossa produção, enriquecendo-a e fazendo com que nossos trabalhos estivessem colados ao momento político que atravessávamos.

Como você entrou para a luta contra a ditadura? Qual sua avaliação das escolhas daquele período? O partidão foi contra a luta armada, houve gente dele que saiu para a luta, formando outros grupos clandestinos, a esquerda se dividiu mais uma vez…Houve grupos dissidentes que também não foram para a luta armada…

Embora meu pai e muita gente na minha família fossem comunistas e membros do PCB, até meados da década de 60 eu não havia me filiado a nenhuma organização. A discussão dos crimes de Stalin no 20º Congresso do Partido Comunista Soviético e a mudança de linha política do Partidão no seu 6º Congresso, complicavam minhas escolhas.

Mesmo antes de 64, eu já acreditava na luta armada, provavelmente por causa da admiração pela Revolução Cubana. Com a radicalização pós-golpe, a necessidade de uma escolha se impôs. Em 1966 entrei para o PCdoB e, quase imediatamente, passei a participar da luta interna que havia naquele partido.

Meses depois um grupo grande de militantes que queria “luta armada já” formou a Ala Vermelha. Todos os militantes do PCdoB em São Paulo ligados ao movimento estudantil ficaram com a Ala. Muito rapidamente eu me vi como dirigente estudantil da Ala Vermelha. Isso aconteceu antes da consolidação da Dissidência do Partidão no Movimento Estudantil e mais ou menos ao mesmo tempo em que surgiam dezenas de grupos derivados de outros que já estavam no movimento.

Nessa época o Zé Arantes era presidente do Grêmio da Filosofia e eu era, ao mesmo tempo, diretor de Cultura do Grêmio e dirigente da Ala Vermelha no Movimento Estudantil. Tínhamos contatos abertos (o Grêmio produziu meu filme “Universidade em Crise”) e clandestinos onde discutíamos como conduzir o movimento.

É necessário esclarecer que, nesse momento, a Ação Popular (AP), que dominava o Movimento Estudantil em São Paulo, estava perdendo espaço para os comunistas. Na Maria Antônia esse espaço estava sendo ocupado pela Dissidência (ainda em formação) aliada à Ala Vermelha. Por exemplo: quando o Bernardino, que era da Dissidência – foi eleito presidente do Grêmio, acertou-se que Dissidência e Ala tomariam o Cursinho do Grêmio, que era dirigido pela POLOP. A direção do cursinho foi entregue à Ala.

Como você conheceu o ex-ministro José Dirceu?

Como dirigente político da Ala conheci pessoalmente o Zé Dirceu, embora já acompanhasse sua trajetória como presidente da União Estadual dos Estudantes – São Paulo (UEE-SP). Na condição de dirigentes responsáveis pelo movimento estudantil, ao lado de vários outros companheiros, fizemos muitas reuniões para planejar passeatas e outros atos políticos. O Zé era o líder inconteste do Movimento Estudantil em São Paulo.

O que você acha importante relatar sobre a tua prisão e como você avalia o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e das outras comissões da verdade que se instituíram no país?

Fui preso no final de agosto de 1969, pela OBAN – Operação Bandeirantes. A OBAN tinha começado a funcionar há pouco tempo e não tinha idéia muito clara do que era a oposição armada, as diversas organizações e métodos da guerrilha. O negócio deles era baixar o pau de forma indiscriminada e irracional.

Fui torturado de forma muito violenta e pude, também, acompanhar o que acontecia com outros companheiros, o que me levou a perceber que, naquele momento, a tortura era aplicada irracionalmente, muito mais com o objetivo de implantar o terror do que obter informações. Levei três anos para ser julgado, passando pelo DEOPS, Presídio Tiradentes, Detenção e Penitenciária do Carandiru. Fui condenado a 10 anos e saí em condicional depois de 5 anos.

Acho importantíssimo o trabalho da Comissão Nacional da Verdade e de todas as outras Comissões da Verdade. Até hoje, 30 anos depois do fim da ditadura, não se conhece sequer uma fração das violências e ilegalidades cometidas durante aquele regime. Creio que é necessário rever a Lei da Anistia, punir os responsáveis pelas torturas e assassinatos.

Na prisão, você teve a ideia de escrever Em Câmara Lenta. Por quê um romance? Conta pra gente sobre o livro e a censura – e seu retorno à prisão – após a publicação.

Desde que fui preso, sempre tive a idia de escrever algo sobre a experiência da guerrilha, dentro de uma visão autocrítica, mas ressaltando a importância, a doação e, até mesmo, o heroísmo daqueles que escolheram a luta armada. No final de 1972, a notícia do assassinato de alguns companheiros que me eram próximos (como Aurora Maria Nascimento Furtado – a Lola – e José Arantes) transformou esse projeto numa necessidade.

Eu precisava entender através do trabalho num texto de ficção, como tinham sido as escolhas daqueles companheiros, escolhas que os levaram à morte. E isso tinha estreita relação com minha preocupação autocrítica. Escrevi o livro na cela, depois do horário de “tranca”, copiei-o em papel de seda. Essas páginas eram dobradas até ficarem do tamanho de um comprimido. Então elas eram impermeabilizadas com papel celofane e fitas durex. Geralmente era minha mãe que saia do presidio com as “pílulas” debaixo da língua. Quando saí da cadeia, encontrei o livro já datilografado.

“Em Câmara lenta” conta o momento final da guerrilha, quando alguns companheiros não conseguiram fazer a autocrítica de uma luta já perdida e lutaram até a morte.Minha intenção era mostrar como decisões políticas incorretas podem levar a desfechos trágicos, embora a luta tenha sido necessária e tenha contribuído politicamente para a derrubada da ditadura.

No entanto, o então Secretário de Segurança de São Paulo, coronel Antônio Erasmo Dias, achou que o livro era uma “apologia da guerrilha” e mandou me prender. Muitos intelectuais, escritores, jornalistas brasileiros e, mesmo estrangeiros (como o teatrólogo americano Arthur Miller) fizeram abaixo-assinados pedindo minha libertação.

Como o motivo da prisão era a interpretação do texto do livro, quem escreveu as peça chave de minha defesa foi o professor Antônio Cândido, que demonstrou que o livro era mesmo uma autocrítica. Nesse processo fui absolvido pela Justiça Militar.

Qual Brasil você encontrou após ter saído da prisão?

O Brasil que encontrei ao sair da prisão foi um país que começava a reagir politicamente contra a ditadura. Menos de dois anos depois de sair da cadeia, fui trabalhar na realização de filmes que retratavam o cotidiano e as lutas dos metalúrgicos do ABC.

Ali participei do renascimento do sindicalismo brasileiro, da criação de uma nova proposta para o país. Por todo o território brasileiro milhares de pessoas se mobilizavam contra a ditadura, seja na luta pela Anistia, seja criando pequenos jornais de combate à ditadura etc.

O movimento grevista do ABC catalisou todos esses movimentos dispersos numa força unida, que gerou uma liderança, a de Lula, e acabou por criar o PT, a CUT e a servir de base para a Campanha das Diretas Já (pelo restabelecimento das eleições diretas de presidente da República, suprimidas durante 29 anos pela ditadura).

Por que o cinema?

Para mim, a descoberta do cinema foi a descoberta de um meio de expressão artística que podia ser, sem perder sua qualidade como arte, utilizado como forma de luta pela transformação do mundo. Por diversos motivos, me engajei desde o começo no documentário. Acreditava que este era um meio de compreender as complexidades da sociedade e devolver essa compreensão para um publico que pudesse se engajar na sua transformação.

Depois de sair da cadeia entendi que minha militância podia ter o documentário como eixo, como instrumento de luta. Todos os meus filmes tem esse sentido, sem abrir mão da preocupação estética e da necessidade de, antes de mais, fazer bons filmes.