O carnaval de Angola segue vitorioso 

O desenvolvimento econômico, a estabilidade política e a dinâmica no processo de reconstrução, após 27 anos de guerra, é o elemento que mais simboliza a realidade da República de Angola e que, em certo sentido minimiza as contradições e as demoras na realização de tudo aquilo que, ainda, deveria ser feito.  

carnaval em Angola - Reprodução/ngodebates.blogspot

É, de fato, um processo extremamente dinâmico que rompe com a lassidão de certos países africanos, mesmo se o novo Estado, que surgiu com base na reconciliação nacional, se deve movimentar e conviver entre a avidez do capital e os mecanismos que compõe o variado cenário étnico e político angolano.

Um Estado que, à diferença de tantos outros, se preocupa com a cultura e os produtos culturais destinados a proporcionar à sociedade lazer, conhecimentos, sonhos, sensações e, sobretudo, a essência de certa “angolanidade”, que sempre despontou na literatura, na poesia, na pintura, na escultura e nas artes cênicas, por isso o Carnaval da Vitória foi e continua sendo a maior representação da cultura angolana.

Entretanto, falar, hoje, do Carnaval de Luanda para quem viveu o primeiro Carnaval da Vitória, em 1978, quando o “camarada” Agostinho Neto – já dramaticamente minado pela doença – fez questão de sentar no palco da Avenida de Quatro de Fevereiro (a Avenida Atlântica de Luanda) ao lado do Ministro da Defesa Iko Carreira e do jovem ministro, hoje presidente da República, José Eduardo Dos Santos, é, sem dúvida um salto no passado que produz certo estímulo intelectual. Pois, o “carcamano Botha” – símbolo do então regime racista – hoje tem outros substitutos, com personagens produzidos e idealizados pela imaginação popular que representam a múltipla realidade da cultura angolana.

Uma cultura que, tal como a economia, cresce e pretende dinamizar, cada vez mais, seu desenvolvimento e suas características, para poder manter um equilíbrio em nível nacional, visto que a herança colonial e o drama da guerra civil aprofundaram o fosso entre as cidades do litoral e o interior. Um contexto que o Ministério da Cultura está praticamente encurtando promovendo e dinamizando importantes atividades em Angola e no exterior.

A seguir entrevista exclusiva com Rosa Cruz e Silva, Ministra da Cultura da República de Angola, concedida ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato — Em 1978, o falecido presidente Agostinho Neto introduziu no cenário cultural angolano o Carnaval da Vitória. Hoje, o carnaval que se realiza em Angola virou uma cópia do desfile realizado em Luanda?
Rosa Cruz e Silva – Não, o carnaval angolano, hoje, é cada vez mais angolano, no sentido que possui suas próprias características. Querendo fazer uma retrospectiva rápida do nosso carnaval, posso dizer que ele se desenvolveu nas áreas litorâneas do nosso país, e em particular na capital Luanda, com manifestações culturais importantes também em Benguela, Namibe, Catumbela e Cabinda. Porém, hoje, passados 34 anos daquele primeiro Carnaval da Vitória, podemos dizer que o carnaval é um fenômeno cultural de massa que ocorre em todo o país. Alias, quero lembrar que também no interior de todas as províncias do nosso país se festeja o carnaval. E, naturalmente, também em função disso e pelas razões de ordem históricas, hoje, a realização do carnaval apresenta formas diferenciadas, no sentido de que a estrutura musical, o passe das danças e os próprios costumes usados são específicos de cada local. Isto é, não há cópias! Cada um prepara as vestimentas, os ritmos e os textos dos blocos de forma autônoma. Por isso os desfiles carnavalescos realizados nas cidades das províncias do leste, ou do centro ou do sul não são os mesmo desfiles que se realizam nas cidades da faixa litorânea. Digamos que a grande diferença entre o carnaval do Brasil e o nosso é que aqui, em Angola não existe a indústria dos foliões. Agora, a novidade é que a particularidade estética e a diversidade musical foram se contagiando de região para região, sem, porém, modificar o projeto de cada bloco. Por isso, todas essas particularidades aparecem na realização do carnaval, no qual cada bloco desenvolve seu estilo, seu ritmo, mas absolutamente angolanos.

Alguns anos atrás, em Salvador, os artistas brasileiros Carlinhos Brown, Marisa Monte e Martinho da Vila realizaram um show com o artista angolano Bonga e com ele gravaram ao vivo várias canções angolanas dentre as quais a famosa Mulembeira. Naquela ocasião, Bonga disse que aquele repertório representava as canções da resistência, que ele cantou juntamente a Ruy Mingas e Dionísio Rocha. Músicas que não têm nada a ver com o que se toca hoje. Poderia explicar se existe um conflito de gerações entre os músicos da dita resistência e os dos nossos dias?
Segundo o meu ponto de vista, não há conflito do momento que cada época produz manifestações culturais próprias. No caso específico da música, ela se desenvolve com base as circunstâncias em que ela é produzida. Agora, no tempo a que se refere Bonga, bem como André, Rui Mingas, o próprio Katalando e outros nomes da nossa música, eram momentos de conflitualidade com o sistema colonial. Por essa razão, a música foi até um instrumento para fazer ouvir de forma sutil e oculta a voz da resistência. Músicas que conseguiram fazer passar algumas mensagens capazes de despertar e conscientizar nosso povo. Além disso, eram músicas que desempenharam um papel importante para a afirmação cultural angolana, visto que os modelos que nos impingiam, contrariavam aquilo que representava a vontade de resistência do povo e que visava reafirmar abertamente a afirmação da cultura angolana. Nos dias de hoje, a cultura musical continua a desenvolver-se, porém com outras nuances, com outros ritmos e em direção de uma juventude que tem outros anseios, outros desejos, outras emoções, enfim tem outras preocupações. Além disso, os músicos de hoje têm outros meios tecnológicos para interpretar e produzir suas composições. Portanto e com base nisso tudo, posso dizer que não há conflitos, mas, sim, diferenças substanciais. 

Não acha que a influência dos ritmos de artistas sul-africanos, que as gravadoras transformam em estrelas de um dia para o outro só para vender discos e vídeoclipe, podem minimizar o feeling musical angolano, influenciando, sobretudo, a juventude dos centros urbanos?
Eu queria ressaltar, nesse âmbito, que os ritmos importados não provocaram rupturas em nosso compêndio musical. São ritmos importados que representam uma moda que dura certo tempo e depois passa. Com isso, quero, porém, dizer que nossos músicos mantêm suas características harmônicas e seguem seus estilos. Aliás, os novos grupos e vários artistas procuram recuperar as mensagens das músicas da resistência para fazer uma nova edição com uma harmonia musical dos nossos dias. Portanto, é muito importante que os artistas das novas gerações façam essas novas versões buscando a matriz dos ritmos do passado. Por isso, hoje, há muitos artistas interessados no antigo ritmo tais como o semba, o kilapanga, sem esquecer o kizomba, que saiu das fronteiras angolana e, hoje, percorre o mundo como se fosse um ritmo inventado recentemente, quando na realidade só agora ele foi redescoberto.

Quando no exterior se fala de literatura angolana, normalmente se dá enfoque, sobretudo, a quatro grandes escritores cujos livros e poemas contaram a história do povo angolano durante a opressão colonial e depois em ocasião das guerras de libertação, me refiro ao falecido presidente Agostinho Neto, Manuel Rui, Pepetela e Luandino Viera. Agora, quem está contando as história de um país já independente e em plena recuperação econômica?
De fato, em Angola há um novo contexto socioeconômico e também uma nova geração de ótimos escritores e poetas, tais como João Manuel Mona, Luis Mendonza, Lupitz Feijó, Luis Kandjimbo, Maria João que escreve livros para as crianças, Justina Fernandes, entre outros. Escritores que ganharam uma importante espaço na literatura angolana, apesar de não terem, ainda, alcançado a fama de Luandino Viera, de Pepetela ou de Agostinho Neto que ao escrever o livro de poemas Sagrada Esperança realizou uma obra máxima. Por isso, o Ministério da Cultura planejou a reedição das obras literárias dos escritores do passado, inclusive daqueles que não foram muito conhecidos, enquanto procedemos a publicar os livros dos escritores da nova geração, de maneira que entre passado e presente haja, sempre, um equilíbrio e uma linha de continuidade. Em 2003, começamos a participar massivamente nas feiras internacionais de livros e pretendemos continuar porque esse é o caminho para promover nossa literatura. Agora outra grande iniciativa que temos é a tradução dessa obras em diferentes idiomas. De fato, quando fomos à feira do livro em Havana e depois em novembro de 2013 na Espanha, reparamos que a apresentação de muitos dos nossos livros já traduzidos contribuiu para a afirmação de nossa literatura no exterior. Agora, é claro que devemos fazer mais, seja em termos de tradução nos diferentes idiomas, quanto na participação nas feiras internacionais trazendo os autores dos livros e em particulares os da nova geração.

Durante quase 20 anos, o cinema angolano ficou apertado entre as reportagens de guerra da TPA e as dificuldades em fazer cinema em um país que sofreu primeiro as consequências de uma guerra de agressão e depois o drama da guerra civil. Com a volta da paz, da reconstrução e da estabilidade na economia, como se está desenvolvendo o cinema angolano?
Quando falamos em cinema angolano, é preciso sermos realistas, porque o cinema é também um setor complexo. Por isso, admito que o cinema angolano ainda não alcançou o nível e o ponto de desenvolvimento que pretendemos. Em função disso, estamos trabalhando na perspectiva de relançar o esse setor criando, antes de tudo, alguns mecanismos que devem favorecer o seu crescimento. Por exemplo, em cada ano, nós realizamos em Luanda um festival internacional do cinema, permitindo a participação dos nossos jovens diretores que produziram documentários e curtas- -metragens. Ao mesmo tempo, aproveitamos esse festival para organizar vários ateliês para melhorar a formação técnica e aprofundar as metodologias para a produção cinematográfica que é contínua evolução. É claro que iniciamos um processo que está ainda em curso e que necessita de tempo para sua afirmação, inclusive porque pretendemos dar aos profissionais do cinema as condições para encontrar financiamentos com os quais realizar os roteiros que eles idealizaram e que querem transformar em obras de cinema.

Fonte: Brasil de Fato