Pedro Albuquerque: Quem tem poder, obriga a julgar

Por *Pedro Albuquerque

Está em todos os meios de comunicação a revelação feita por um coronel de nossas Forças Armadas: “Militares arrancavam dentes e dedos de mortos torturados na ditadura”.

Não, não podemos ser indiferentes a essa barbaridade. A presidente da República precisa tornar efetivo o mandato que os constituintes originários conferiram-lhe em nome do povo brasileiro, e que está posto na Constituição de 1988: Art. 84, inciso XIII: “Exercer o comando supremo das Forças Armadas, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos”. É preciso fazê-lo agora e ordenar que os comandantes das três forças – Exército, Marinha e Aeronáutica – assumam a barbaridade que seus quadros, especialmente seus oficiais, praticaram em nome dessas instituições, para condenar essas práticas, erradicá-las definitivamente de seu seio e pedir desculpas ao povo brasileiro de forma incondicional. Incondicional, sim, porque nada as justifica, quer seja a luta contra o comunismo ou a luta contra a subversão da ordem e o terrorismo, como costumam alegar os que rasgaram a Constituição de 1946.

Nas fileiras das três forças, oficiais militares com poder de mando acobertavam o sadismo de psicopatas. Torturadores são pessoas que podem ser tidas como normais, à primeira vista, pelos que as conhecem superficialmente. Mas, são indivíduos egocêntricos e indignos de confiança. Divertem-se e gozam com o sofrimento de sua vítima ou de sua “presa”. Não têm sentimento de culpa e sempre encontram desculpas para suas práticas ignominiosas.

Em geral, jogam em terceiros a responsabilidade por essas práticas. Não aprendem com os erros, nem têm freios morais e éticos em seus impulsos. Esse tipo de personalidade era funcional aos objetivos dos comandos militares em arrancar informações e eliminar fisicamente os prisioneiros. Esse estado de terror servia à estratégia de manutenção do poder e à construção de impunidades numa eventual transição de um regime ditatorial para a democracia.

A presidente da República encontra na nossa Carta Magna, afora os tratados e convenções internacionais a que o Brasil aderiu, os princípios que podem embasar sua ordem de comando: Art. 5o., inciso III: ninguém será submetido à tortura nem ao tratamento desumano ou degradante; inciso XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção; inciso XLIII: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetível de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; inciso XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Todos os acusados por terrorismo ou por subversão da ordem já foram punidos pelos ditadores, com penas de prisão, com torturas, desaparecimento forçado e sequestro seguido de morte, banimento, exílio, “penas” que se estenderam, muitas vezes, aos familiares dos “réus”, numa flagrante subversão do princípio segundo o qual pena alguma passará da pessoa do condenado.

Trata-se, presentemente, de investigar os crimes cometidos pelo Estado – é o que a Comissão Nacional da Verdade está a fazer – e abrir passo, com a verdade apurada, no mais estrito respeito ao princípio do contraditório, para a revisão da Lei de Anistia, através da qual os militares-ditadores se auto-anistiaram e pretenderam proteger os que cometeram crimes. E, com base no relatório final dessa Comissão, e independentemente de reapreciação pelo STF da Lei de Anistia, a Presidente da República deve, em cadeia nacional de rádio e TV, dirigir-se ao povo brasileiro para, em nome do Estado, pedir-lhe desculpas (foi em nome do povo que os militares buscaram legitimidade para o cometimento de seus atos delitivos), e ordenar que os comandantes das três Forças Militares façam o mesmo.

Essa não é uma questão meramente jurídica e não pode e nem deve cingir-se à sua lógica. É, também, uma questão moral e ética. Ao condenarmos essas práticas, estaremos traçando os princípios morais e éticos pelos quais desejamos que nossos descendentes se referenciem. E é uma questão política, uma vez que a justiça só se realiza através do exercício do poder, pela vontade expressa do povo representado no corpo legislativo e nas organizações da sociedade civil.

Quem tem o poder, e o exercita, não faz o julgado (nas ditaduras e nas democracias em crise, o faz), mas obriga a julgar!

*Pedro Albuquerque é sociólogo e advogado

Fonte: Blog do Eliomar de Lima


Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.