O método Brecht: utilidade e atualidade

Livro-chave dentro da obra do crítico norte-americano Fredric Jameson, Brecht e a questão do método ganha nova edição no Brasil  

Por Tarso de Melo (*)

Bertolt Brecht

Para aqueles que cobram da crítica cultural o enfrentamento radical, rigoroso e, mais que tudo, vivo das questões todas que se colocam, cada vez mais frequentes, na compreensão da sociedade capitalista, a obra de Fredric Jameson (EUA, 1934) é, há meio século, uma referência incontornável. São dele, por exemplo, algumas das mais importantes páginas da crítica literária marxista, bem como estudos fundamentais sobre pós-modernismo, sempre na contramão do entusiasmo em que se afundaram tantos contemporâneos.

No Brasil, por mais que possam ser apontadas faltas lamentáveis na tradução das obras de Jameson (como a sua dissertação sobre Sartre, orientada por Auerbach, seus estudos mais recentes sobre Hegel, Marx, utopia, dialética, ficção científica e, desde já, o recém-lançado Antinomies of Realism), a reclamação do leitor se abranda um pouco por encontrar, mais nas bibliotecas que nas livrarias, parte considerável de diversas fases de sua obra.
 
Se não me escapa algum, desde a década de 1980 o leitor brasileiro pode ler, por aqui, Marxismo e forma (Hucitec, 1985), O inconsciente político (Ática, 1992), As marcas do visível (Graal, 1995), Pós-modernismo (Ática, 1997), As sementes do tempo (Ática, 1997), O marxismo tardio (Boitempo, 1997, relançado em 2011), O método Brecht (Vozes, 1999), A cultura do dinheiro (Vozes, 2001), Espaço e imagem (EdUFRJ, 2004), Modernidade singular (Civilização Brasileira, 2005) e A virada cultural (Civilização Brasileira, 2006).
 
No entanto, se há um livro-chave nesse longo e denso percurso crítico do quase octogenário e ainda prolífico Jameson, trata-se de Brecht e a questão do método, que acaba de ser relançado pela Cosac Naify, em tradução de Maria Sílvia Betti. O livro – que em sua primeira edição brasileira se chamava apenas O método Brecht, título mais fiel às ideias de Jameson do que o da edição atual e talvez do que o próprio original Brecht and Method – foi lançado originalmente em 1998, centenário de nascimento do dramaturgo alemão, com a declarada intenção de identifcar em sua obra um método e, assim, defender sua utilidade “para um presente imediato em que a retórica do mercado pós-Guerra Fria chega a ser mais anticomunista que a dos velhos tempos”.
 
Mas no que consistem o método e a utilidade de Brecht? Por que, desse método e dessa utilidade, decorre uma atualidade de Brecht? Diante dessas que talvez sejam as perguntas iniciais que o livro exige, o leitor notará que não é tarefa simples acompanhar a forma como Jameson percorre o pensamento de Brecht (em suas peças, diários, textos teóricos etc.) e o expõe entremeado ao seu próprio, mas não deixará de reconhecer que é justamente nesse encontro – ou nó – que se _rma a dupla importância do livro: para o estudo sobre Brecht e também para o desenvolvimento da obra do próprio Jameson. Neste ponto, sobre as tramas da exposição de Jameson, remeto à cuidadosa “paráfrase” de autoria de Gislaine Cristina de Oliveira, “Desemaranhar: estudo de O método Brecht de Fredric Jameson”, dissertação de mestrado em Teoria e História Literária, defendida na Unicamp, em 2011.
 
O que Jameson apontará como método em Brecht – com visível intenção de que outros artistas dele façam uso, daí a utilidade a que se liga sua descoberta do “método Brecht” – é sempre tratado com os cuidados das “aspas”, para evitar sua fetichização e principalmente seu afastamento da prática e da natureza de seu “objeto”. O que Jameson busca, naquilo que chamou de “triangulação” entre “linguagem, pensamento e prática narrativa” vai além de cada um dos textos do dramaturgo, é mais que cada um deles, mas não transborda para a metafísica dos  métodos perfeitos em si próprios, comuns a diversos filósofos.
 
Pedagogia brechtiana
 
O método Brecht consiste, num certo sentido, na forma como seu trabalho de dramaturgo busca sempre ensinar algo, ou seja, em seu didatismo, mas principalmente nas formas que esse didatismo assume: não há um gesto professoral – unilateral e formalista, portanto – que apresenta um objeto de determinada maneira (a correta) a alguém. A “pedagogia brechtiana” se constrói, ao contrário, de modo coletivo e dialético, muito mais baseada em práticas de que a plateia/ leitor participa do que em ensinamentos que lhe são entregues, ainda que, em última análise, a ela de fato seja oferecida, como resultado dessa interação intelectual, uma espécie de “aprender a aprender”, isto é, a apreensão de um “método” de conhecimento e de intervenção na realidade.
É neste sentido que se destaca, entre as questões centrais do livro, a da representabilidade do capitalismo, porque, para flagrar a “ideia de Brecht” (um dos nomes que o “método” recebe no livro), é indispensável considerar que sua obra mergulha – porque quer fazer com que os outros mergulhem – na investigação de um tempo histórico determinado e, claro, não esconde sua posição política contrária, resistente, revolucionária.O “método Brecht”, não há dúvida, apenas pode ser compreendido em sua dimensão política.
 
Entre nós, num texto escrito logo após o de Jameson, Roberto Schwarz formulou de modo preciso o caráter “engajado” da arte de Brecht: “a célebre exigência de que a cena represente o mundo enquanto transformável participa do mesmo espírito [de ‘desnaturalização’]. Se a considerarmos apenas como um lembrete do caráter histórico das relações humanas, sempre mudadiças, ela hoje estaria banalizada. Mas se reconhecermos a ênfase no transformável, com sua recusa tácita do presente de exploração, estaremos diante de um imperativo mais difícil, para o qual a inteligência da historicidade não pode ser dita real se não ao atender às necessidades da intervenção modificadora. A oportunidade do mandamento e a dificuldade de cumpri-lo saltam aos olhos” (“Altos e baixos da atualidade de Brecht”, Sequências brasileiras, 1999).
 
O livro de Jameson identifica esse gesto de Brecht, declara sua atualidade e, de certo modo, renova sua força. Mais que isso: os anos que se passaram desde o lançamento de Brecht e a questão do método _zeram com que sua atualidade estivesse ainda mais confirmada hoje. Por quê? Ao extrair um método de Brecht, o intuito de Jameson era resgatar o dramaturgo a um só tempo, daqueles que o imitavam sem entender a radicalidade de seu gesto e também dos que o davam por morto, visando, em especial, provocar a reflexão sobre o estatuto da arte e da crítica genuinamente vinculadas ao socialismo numa sociedade em que a alternativa socialista é comumente tida como bloqueada.
 
Ao afirmar que se trata de um livro-chave no percurso de Jameson, mais do que um livro importante na bibliografia sobre Brecht, o que tenho em mente é que o livro não vale apenas pelo entendimento da relação da obra de Brecht com seu tempo, mas fundamentalmente pelo desafio a que se dedica de projetar, a partir daquela relação, o que o “método Brecht” ensina para a arte de hoje, diante de problemas novos trazidos pelo estágio atual do capitalismo.
 
Com isso, Fredric Jameson leva sua reflexão muito além da já admirável contribuição que deu à crítica marxista da literatura ou mesmo da denúncia ideológica do pós-modernismo, para desvendar, com a ajuda de um grande artista, qual o papel que a arte pode e deve desempenhar em tempos ainda mais difíceis. Diante dessa provocação de peso, o que farão os artistas?
 
(*) Poeta, professor universitário e doutor em Filosofa do Direito pela FDUSP. Autor de Caderno inquieto (São Paulo: Dobra, 2012)
Serviço
Brecht e a questão do método
Fredric Jameson
Cosac Naify
Fonte: Revista Cult