“Vejo uma sabotagem em cima do governo”, diz Otto sobre Lula e Dilma

No palco, nas fotos, o gesto é uma assinatura. Otto agarra a cabeça com as mãos, os dedos envolvendo o crânio, pressionando-o, movendo-se em torno da face, bagunçando o cabelo. A imagem toca na ideia de loucura, da irracionalidade, de potência contida de animal. Sua música, em exemplos como “História de fogo” (“É melhor se queimar/ Que viver na solidão”), ilumina energias básicas do sexo e da paixão como regentes maiores do comportamento humano.

Otto - Reprodução

É divertido ver essa impressão de força animal de sua imagem traduzida de forma lúdica e involuntária pelas crianças que o cercam, chamando-o de Wolverine, o herói besta-fera dos filmes e quadrinhos dos X-Men, enquanto ele caminha na favela do Vidigal, onde mora desde o início de 2013.

Nada mais distante dessas impressões do que o discurso de Otto – compositor que tem dois prêmios APCA (concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte) e que já ganhou um perfil no “New York Times” no qual era tratado como um artista que “ocupa um lugar inusual e improvável na música brasileira”.

Aos 45 anos, o músico pernambucano, na entrevista que concedeu à CULT numa tarde de sábado, apresenta um pensamento que a todo tempo aponta para a ponderação, para a defesa da não-radicalidade, para o equilíbrio. Instalado entre as ruas do Vidigal (com seu trânsito de motos e carros e seu movimento intenso) e a sua janela com vista linda para o mar, Otto está, hoje, mais afeito à tranquilidade do segundo cenário. Sem abandonar o primeiro, a rua – afinal, seu interesse em política e na dinâmica dos protestos iniciados no ano passado dominam a conversa naturalmente. Sua própria escolha de morar no Vidigal atende um tanto aos dois lados, a placidez contemplativa e a proximidade do calor da cidade, do país.

“No apê não tem barulho, você olha pela janela é Santorini. E você sai e pega uma Bangkok, pelo caos do trânsito, das motos”, descreve Otto. “Sinto uma paz da porra aqui, parece uma cidade do interior. Quase não saio daqui, nem para o Baixo Gávea eu tô indo. Me identifico muito com o Nordeste que existe aqui, tem muito nordestino, me sinto em casa. Parece Olinda. Todo mundo se conhece. E é um lugar muito seguro, nunca vi uma briga. Sem falar que aqui do lado tem Gávea, Leblon, se eu quiser ir pra Barra… É um lugar muito estratégico. E tá essa loucura agora de o mundo estar aqui dentro, muito gringo, e o perfil do gringo daqui é o cara jovem – conheci alemão, francês… . E tem gente que tá aqui há muito tempo. Estava falando ontem com um cara que chegou aqui em 74. Hoje ele tem cinco casas, três carros, veio do Nordeste… As pessoas se dão bem aqui”.

Otto olha em volta e mostra lugares como o café-restaurante Atelier Culinário e um boteco “dos nego véio”, onde tem “uns tiragostos bem da hora”. Mas diz que sua vida ali é pacata. Praia como rotina (“Essa coisa de acordar com o mar é salutar porque você já dá uma limpada na mente boa, pra escrever é melhor”), aeroporto para cumprir a agenda de shows. E muito tempo em casa. É dali, do silêncio, que ele pensa sua música – está compondo para um disco novo, batizado de “Ottomatopeia”, para o qual já fez sete canções. É dali, do silêncio, que ele vem olhando para o país. Gosta do que vê, quando olha para a forma como ele vem sendo conduzido. E não gosta, quando pensa no que qualifica como o equívoco dos protestos dos últimos doze meses.

“Sou contra a violência. Nunca concordei com Black bloc, com as pessoas quebrarem coisas. Não achava que o Brasil precisava chegar num desespero tão grande. O que eu vejo é uma politicagem, uma sabotagem em cima desse governo, algo que eu sinto desde o primeiro governo de Lula. Eu morava no alto Leblon quando Lula ganhou. Era só eu e mais dois apartamentos gritando e o resto calado. Eu que ando pelo Brasil vejo que a gente nunca teve uma situação melhor. Mas tem pessoas que não aguentam ver o pobre garantir mais coisa”.
A fala de Otto prossegue no fluxo ininterrupto que a caracteriza, pontuada pela palavra “democracia”: “Fico do lado da democracia sempre. Principalmente em horas como agora. Torço muito por dona Dilma, mas tô esperando a votação, o que vai dar. Respeito isso aí. Mas sou contra essa manifestação toda, esse perigo no qual estão colocando o Brasil. Parar a Copa, acho isso tudo aí meio ingênuo. No Rio tem a situação de Paes, de Cabral… Eles tiveram azar e incompetência juntos. Perderam muito da popularidade por incompetência sim, mas não quer dizer que eu vou matar o cara, ou parar em frente da casa dele. Acho que tudo se resolve no voto”.

De onde está, Otto vê a polarização crescente no debate político brasileiro – e no subdebate que se espraia pelas redes sociais e chega mesmo às páginas de revistas e jornais – como sintomas de uma doença maior. “Se eu fosse presidente ia chegar com meu psiquiatra: ‘Eu estou aqui com meu psiquiatra, o ministro da Justiça com o psiquiatra dele, o chefe da polícia com o dele, vocês policiais…’. Vão se tratar todo mundo. Está todo mundo precisando. Seria o maior ato de um presidente se ele assumisse que o país está passando por uma loucura”, diagnostica o artista, que conta um episódio pessoal que exemplifica o que ele diz.

“Minha filha passou por um perrengue em São Paulo na condução do colégio dela. Estava havendo um desses protestos, com confrontos. O caminho dela cruza a Paulista. Cheguei numa rede social, na minha página, e botei: ‘Black blocs, policiais, dá pra parar? Porque tá ficando uma zona, minha filha tá aí, correndo perigo’. Aí um artista (cantor de uma banda de pop-rock) entrou na minha página e disse: ‘Desculpe pela sua filha, mas sacrifícios vão ter que existir’. Tá entendendo como é a loucura? Eu reclamando pelo perrengue da minha filha e o cara fala em sacrifico. Parece uma coisa de Segunda Guerra Mundial. Não cabe mais essa revolta maluca hoje. O Brasil tem uma coisa pacífica tão bonita e isso está se perdendo. Falava com meus amigos que estavam numa de quebrar tudo de destruir: ‘Calma aí’. Senão isso vai atiçar os bolsonaros, pode ver que eles subiram todos. Nessa hora sobe esse “boa família”, preconceituoso, careta… Esse cara está amando na hora que radicaliza. Vem a marcha da família, essas coisas tristes”.

Quando é lembrado de que o conceito de democracia, tão caro a ele, também sustenta o discurso tanto de black blocs quanto de bolsonaros, Otto defende a sua ideia do termo: “Democracia é principalmente não ser radical. É ter o meio termo do fio, estar equilibrado para poder estar dentro de uma sociedade”, acredita Otto, que admite que sua posição já foi outra. “Houve uma hora da minha vida em que vivia num mundo mais careta, mais difícil politicamente. Vim de Pernambuco com essa raiva, esse ranço de brigar e de mudar. E consegui. Democraticamente eu consegui mudar esse país, com meu voto. Já fui um tempo mais radical, mas eu tinha Sarney de presidente. Hoje ele é apoiador da base do meu governo. E eu não posso derrubar o meu voto porque o Sarney está me apoiando. Tenho que defender um pouco o apoio dele. É delicada a coisa. A democracia se constrói pouco a pouco”.

A loucura nacional, a doença psíquica que Otto identifica nos embates políticos nacionais, encontra eco em outros aspectos da vida brasileira, na opinião do músico. “Eu comecei a beber novo, mas bebia com os velhos, eu mais dois. Hoje tem casa na Barra que bota Revelação, Catra, com open bar e meninas com entrada liberada. Vodka de graça, meninas de graça… Você quer o quê?”

Quando sua reflexão sobre álcool e juventude parece, à primeira vista, estar mais próxima a de um político moralista de direita que a de um rockstar, Otto desvia o foco para a grande economia. “Você está entendendo o que isso representa pro Brasil, a Ambev ser uma das maiores do mundo, o mal que a gente tá causando com isso? E nego prende mijão! Quando o Ambev muda de bebida ou faz um puta banheiro para as pessoas que estão comprando a cerveja deles”

Na pausa, Otto para como se ouvisse de novo que acaba de dizer, e ficasse surpreso com sua própria ideia. “Tenho minhas radicalidades, é verdade”, diz, antes de mergulhar na ponderação de seu espírito anti-Wolverine. “Mas não vou chegar lá e esculhambar um Bolsonaro. O caminho é torcer pelo que se acredita. É o que faço”.

Por Leonardo Lichote, na Revista Cult