Sandra Helena de Souza – O maior legado

Por *Sandra Helena de Souza

Minha geração cresceu sob a batuta de coturnos e continências servis, mas cedo, alguns aprendemos a recusar, quando não odiar, os símbolos pátrios, vinculados ao autoritarismo e imperialismo das elites chapas-brancas.

A luta pela redemocratização e o duro percurso que nos trouxe até aqui distendeu levemente esse recalque nacional, mas não a ponto de elucidar seu produto mais bem acabado: o rodriguiano ‘complexo de vira-latas’. Resiste, então, um imperativo simbólico: auto-impedidos de nos congratularmos com nossa brasilidade verde, negra, cabocla, índia, amarela (o que seria uma ufania imperdoável), nos engajamos com afinco em sermos os piores em qualquer escala, mesmo que os fatos desmintam o caos.

Em maio de 2001 escrevi: ‘O esvaziamento do debate e a descrença nas instituições políticas, em favor de um eticismo ideológico que toma a corrupção como causa de todos os males (…) agora cobra seu preço: grandes camadas da população (…) querem sangue’. E prossegui: ‘A inteligência tucana nada fez para qualificar o debate público. Agora posa de virgem ofendida. A imprensa nada mais faz que servir ao poder, de acordo com as conveniências de sua “liberdade de expressão”, como sempre. Ela oferece a satisfação fantasiosa de um impulso agressivo de justiça vingativa.’ O artigo comentava a indignada reação de FHC no penúltimo ano do segundo mandato à onda de ‘denuncismo’ e ‘avidez de escândalos espetaculosos’ como ele dissera.

Hoje o petismo prova desse veneno, de forma ainda mais amarga, considerando os avanços inquestionáveis que seus governos implementaram. Houvesse sido feito um plebiscito em 2007, a aprovação para a realização da Copa seria quase unânime, duvidam? Mas hoje o governo não responde à altura, antes denega críticas e denúncias concretas que vêm de todos os lados, bem e mal-intencionadas (faz parte, ora bolas) perdendo uma estupenda oportunidade de clarificar a esfera pública brasileira sobre um dos maiores entraves de nossa demo-burocracia de interesses burgueses: a lentidão das obras públicas (no caso de mobilidade urbana; bem ou mal os estádios estão de pé), e o problema da não-execução orçamentária mesmo com dinheiro em caixa. Ao fazer ouvidos moucos àquilo que nem a mais espirituosa boutade lulista poderá escamotear o governo comporta-se como um refém com ‘síndrome de Estocolmo’. Se há uma Matriz de Responsabilidade da Copa, quem responde pelo que? Qual a punição prevista?

Quem a aplica? Quando?

As manifestações, mais ou menos pacíficas, são nosso difícil teste de fidelidade democrática, digamos assim. Mas a confiança nas instituições públicas sofre um golpe de morte diante do silêncio que denega a ‘sensação’ de fracasso, tão ou mais danoso que balas de borracha, bombas de gás e prisões arbitrárias. Assumir e lavar a roupa suja, presidenta, romper as podridões do corporativismo público-privado, esse sim seria o maior legado da Copa. Além é claro de voltarmos a cantar o hino a plenos pulmões.

Força Brasil.


*Sandra Helena de Souza é Professora de Ética e Filosofia da Unifor

Fonte: O Povo

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