Coração em silêncio

Pelo menos uma vez por semana, vou ao centro paulistano. Embora a região tenha perdido muito do seu charme, gosto de me sentir como um habitante que viveu ali no esplendor de décadas passadas. Em ruas sujas e cheias de gente, passo na Praça da República, cruzo a Rua Conselheiro Crispiniano ou a 24 de Maio, no rumo da parte mais antiga da metrópole.

Por Roniwalter Jatobá

Roniwalter (crônica)

Outro dia, seguia cheio de devaneios por esse caminho, quando, no começo da Rua Xavier de Toledo e próximo ao Teatro Municipal, alguém me segura pelo braço no burburinho da rua central. De súbito, penso num assalto, no ataque de um trombadinha – e me assusto. Mas, ao voltar os olhos para trás, a figura que me aperta pode ser tudo na vida menos um bandido naquele lugar de adultos ruidosos. Lembra alguém familiar, mas, assim repentinamente, não encontro nenhum registro na minha memória. Com afeto, ela pergunta:

 
– Lembra de mim?
 
Faço um esforço tentando uma breve recordação, mas só encontro o vazio.
 
– Desculpe, mas não lembro não – respondo.
 
Seus olhos claros me fitam com profundidade.
 
– Mas você não é sobrinho de Maria, que mora num condomínio no bairro do Jaguaré, bloco B, apartamento 14 e vive sozinha?
 
– Sim, isso mesmo.
 
É nessas horas que a mente sofre um terremoto, entra em pane, e aí não me lembro de nada, mesmo.
 
– Não, não lembro – repito agora encabulado, enquanto passantes apressados trombam conosco no meio da calçada.
 
Ela parece querer desistir, mas tenta uma última cartada.
 
– Sou a Maria Bernadete, a Maria Baiana, lembra?
 
O nome mágico soltou as amarras das lembranças e seu rosto foi fixando nas minhas retinas fatigadas.
 
– Sim, claro que lembro.
 
Quando visitava minha tia com regularidade, toda manhã ela aparecia no pequeno apartamento do bloco B. Pela janela, eu a via sair do bloco A e, com passos ligeiros, cruzar os caminhos de lado a lado do condomínio. Vinha fazer sua visita diária, sempre ligada pelos sinceros laços de amizade. Separada, duas filhas pequenas, era baiana de Jacobina.
 
Convido-a para um chá ali perto, na Leiteria Americana. Ela dá notícias ao sobrinho quase desaparecido e em falta com sua parente mais próxima em São Paulo. Falamos da vida. Ela conta que, aos 58 anos de idade, já tem três netos. Mais tarde, acompanho-a até a entrada do metrô e, aí, volto a ficar só no meio da multidão.
 
À noite, sonho com as duas, as duas Marias, que caminham tranquilas numa rua de São Paulo. Seguem bem juntas no asfalto molhado por uma chuva repentina. As duas amigas falam coisas simples, pequenos acontecimentos das últimas horas, numa linguagem doce e intraduzível como o marulhar das ondas do oceano. Sinto vontade de dizer alguma palavra, feita especialmente para transmitir o ritmo do meu coração, mas fico em silêncio. E elas continuam, continuam pela rua molhada de uma cidade vazia.