Ucrânia: Sabor amargo para o Rei do Chocolate
O doce nome de "Rei do chocolate", com o qual o oligarca Piotr Poroshenko enfatizou a campanha que o levou à vitória presidencial na Ucrânia com mais de 54% dos votos, corre perigo.
Por Jorge Petinaud Martínez*
Publicado 06/07/2014 10:29

À margem da limpeza étnica que as tropas de Kiev levam a cabo a sangue e fogo contra a população de língua russa no sudeste do país, o começo do fim da lua-de-mel pós-eleitoral parece ter chegado a Kiev.
Uma missão técnica do Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou à capital ucraniana a exatamente um mês das eleições com exigências de tratamentos de choque em troca de empréstimos, confirmou uma fonte da instituição promotora das receitas neoliberais.
O diretor do Departamento de Relações Exteriores do FMI, Jerry Rice, disse que os especialistas em recortes orçamentais permanecerão em Kiev durante duas semanas, segundo o site liga.net.
Por sua vez, Jerome Vashe, representante da instituição financeira, que reside na Ucrânia, afirmou que no final de julho ou em princípios de agosto Kiev pode obter do FMI a segunda parte de US$ 1,4 bilhão oferecidos como parte de um programa de cooperação.
Em 1º de maio passado, a junta do FMI aprovou um empréstimo à Ucrânia avaliado em US$ 17,01 bilhões, e seis dias depois os governantes que derrocaram o presidente Víktor Ianukovitch receberam a primeira parte de três bilhões 190 milhões da moeda estadunidense, segundo a fonte.
A Bolsa de Finanças, entretanto, cifrou em dois bilhões de dólares a primeira parte do programa de empréstimos utilizados para apoiar os orçamentos do Estado, em particular a repressão contra a população das regiões do sudeste, segundo denúncias dos rebeldes.
O primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, reiterou que seu governo fará todos os recortes exigidos em um decálogo do FMI e que afetam entre outros setores a saúde, a agricultura e a mineração.
Nosso governo irá cumprir todas as condições do FMI, pela simples razão de que não temos outra opção, disse ao se referir às 10 recomendações nas quais figuram a privatização de todas as minas.
Estamos prontos para assumir as decisões extremamente impopulares com respeito aos aumentos dos custos sociais e alfandegários, anunciou.
Os promotores dos tratamentos de choque indicaram a Kiev levantar a moratória sobre a venda de terras agrícolas e cancelar os subsídios aos produtores de carne de porco e de frango.
Estão incluídas na lista a privatização de todas as minas, a abolição dos subsídios, derrogar os benefícios dos serviços públicos municipais, o transporte e outras esferas, bem como o apoio estatal às mulheres em licensa maternidade e a gratuidade de comidas e livros de texto nas escolas.
A prática de tributação simplificada será limitada e serão abolidas as isenções do imposto sobre o valor agregado (IVA) no campo, e os farmacêuticos serão obrigados, igualmente,a pagar esse tipo de imposição.
Em dois anos aumentará a idade da aposentadoria para os homens, três para as mulheres, será eliminado o direito de aposentadoria antecipada e o princípio de contar como dois anos o trabalho de um ano em empresas com condições perigosas.
Ficará eliminada, também, a concessão dos benefícios de aposentadorias especiais que são atribuídos aos cientistas, funcionários do governo e diretores de empresas estatais, destaca o Iskra-news.info.
O FMI também exige restringir as retribuições aos pensionistas que trabalham, e estabelecer para os oficiais do Exército a idade de aposentadoria de 60 anos.
Sobre o gás, seu preço aumentará em 50% para as empresas municipais e em duas vezes para os consumidores privados, enquanto o custo da eletricidade crescerá 40%, prescrevem os especialistas em recortes sociais.
O FMI insta permitir o estabelecimento de preços aos serviços públicos na Ucrânia e autorizar seu aumento devido ao aumento do custo do gás. Também indica um aumento especial de 60 euros do preço sobre a gasolina.
Deverão ser cancelado os benefícios e aumentar os impostos sobre o transporte em 50%, além de não aumentar o salário mínimo e equilibrar a situação social apenas com subsídios pontuais.
Com relação ao desemprego, o documento sugere que as prestações devem ser avaliadas somente após um período mínimo de seis meses de trabalho, enquanto o pagamento por doença será feito apenas a partir do terceiro dia do padecimiento, e será até 70% do salário.
Controle do sudeste a todo custo
Conhecido como o Rei do Chocolate por sua fortuna avaliada em mais de US$ 1,3 bilhão de euros, em sua maior parte investida na indústria dos derivados do cacau, Poroshenko tem outro "sabor amargo" na advertência do FMI, de que sem o controle das regiões do sudeste não terá empréstimos.
Um relatório da instituição financeira, destacado pela imprensa, condiciona seu programa de assistência à Ucrânia ao controle do governo sobre as regiões industriais do oriente do país partidárias da federalização.
Se o governo perde o controle efetivo sobre o leste do país, o programa será revisado, adverte o documento, citado pela agência ucraniana de notícias Unian.
No texto, o FMI aponta que as regiões de Donetsk, Lugansk e Kharkov contribuem com mais de 21% do produto interno bruto (PIB) da Ucrânia e com 30 % da produção industrial.
O texto acrescenta que o conflito pode reduzir os ingressos orçamentários e prejudicar gravemente as perspectivas de investimento. Os especialistas do FMI destacam que a situação na Ucrânia poderia se deteriorar ainda mais do esperado, e neste caso precisará de mais ajuda do que a prometida, informa a Unian.
Apesar da repressão que levou milhares de pessoas à prisão em Kharkov, entre eles os principais líderes populares, Donetsk e Lugansk conseguiram realizar referendos onde mais de 90 % da população apoiou com seu voto a federalização do país, o status do idioma russo e uma maior autonomia econômica.
Ignorados esses reclamos, ambas as regiões autoproclamaram sua independência com relação à Ucrânia e se declararam Repúblicas Populares.
Finalmente, ambos os territórios declararam recentemente a União de Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk em uma reunião parlamentar conjunta e escolheram Oleg Tsariov, líder do movimento contestatário Sul-Leste, como titular dessa câmara legislativa.
Como nos tempos da Operação Condor de Pinochet, Stroessner e Videla na América do Sul, os serviços secretos dos Estados Unidos controlam nos bastidores a repressão na Ucrânia contra aqueles que se opõem aos interesses da oligarquia internacional.
O jornal alemão Bild am Sonntag informou sobre dezenas de agentes do FBI e da CIA enviados a Kiev para ajudar, em nome da Casa Branca, a reprimir a sublevação nas regiões do sudeste.
O jornal destaca que o Departamento de Estado se apressou ao desmentir essas informações com o argumento do envio desses especialistas com a tarefa de "ajudar o governo ucraniano a investigar e recompilar provas para recuperar os ativos sustraídos e enviados ao estrangeiro".
Washington tratou de se distanciar do assassinato de mais de uma centena de pessoas e 200 feridos no incêndio provocado em Odessa por elementos neonazistas do Setor Direito e fanáticos do futebol utilizados pelos governantes.
Igualmente, pretendeu se desvincular da ofensiva militar de grande envergadura com milhares de militares, blindados, aviação, lança-mísseis múltiplos, outros armamentos pesados e até bombas proibidas por convenções internacionais contra os habitantes de idioma russo do sudeste.
Diplomatas estadunidenses disseram ao jornal russo Kommersant que os especialistas do Bureau Federal de Investigações radicados em Kiev assessoram as autoridades locais na luta contra o crime organizado.
Ao se referir aos oficiais da Agência Central de Inteligência, trataram de se distanciar das ações repressivas daqueles que derrubaram Ianukovitch, com a justificativa de que trabalham em assuntos relacionados com a reforma e o reforço do Serviço de Segurança da Ucrânia.
É verdadeiro que existe uma estreita cooperação, mas somente ao nível de consultas oficiais, insistiram os representantes do Departamento de Estado.
No entanto, a culpabilidade da CIA na instabilidade que a Ucrânia vivencia ficou demonstrada em março com a visita secreta a Kiev de seu chefe, John Brennan, reconhecida dias depois por Washington após muitas denúncias.
Brennan se reuniu com o então autoproclamado presidente interino e ainda hoje auto proposto titular do Parlamento, Alexander Turchinov, e com os chefes dos corpos repressivos antes de que se ordenasse às Forças Armadas a incorporação da repressão contra os partidários da federalização, o russo como língua co-oficial e mais autonomia.
Pouco depois, através de um decreto, Turchinov decidiu realizar uma operação repressiva de grande envergadura com a participação do Exército e a inconstitucional Guarda Nacional, integrada por elementos neonazistas do bloco Setor Direito e Autodefesas de Maidan.
Videos publicados no YouTube, igualmente, confirmam a presença no leste ucraniano de homens armados sem insígnias de nenhum país, mas vestidos com uniformes característicos das tropas estadunidenses.
Vários desses vídeos permitem escutar ordens em inglês e até gritos de Blackwater!, Blackwater!, em alusão ao antigo nome da maior empresa privada de segurança estadunidense, Academy, verdadeiro exército integrado por mais de 20 mil mercenários, controlado pela CIA.
Limpeza étnica
Os métodos de extermínio e terror da CIA parecem estar presentes na limpeza étnica que acontece no sudeste do país, segundo denúncias da diplomacia russa e dos rebeldes.
O governador da autoproclamada República Popular de Donetsk, Pavel Gúbarev, denunciou que as tropas ucranianas atacaram às autodefesas da aldeia de Semionovka, próxima a Slaviansk, com armas químicas.
Dois milicianos ficaram gravemente feridos (intoxicação por fósforo) e foram enviados a Donetsk.
Um está muito mal, confirmou o líder rebelde em sua página do Facebook.
O governador popular acrescentou que o Exército ucraniano bombardeou as proximidades de Slaviansk com canhões de 240 milímetros, e que foram registrados alguns grandes incêndios.
As autodefesas de Donetsk denunciaram vários ataques durante a trégua oficial vigente no sudeste do país, que foi prolongada pelo presidente Poroshenko, com o objetivo de mostrar a cara negociadora de seu mandato para a Europa e Moscou.
Esquadrões neonazistas do Setor Direito, agrupados no batalhão Donbás, no entanto, exigiram o fim do cessar fogo e uma maior repressão no sudeste, durante uma manifestação em frente ao escritório do próprio Poroshenko.
Simón Semetchenko, chefe do grupo criado após o golpe de estado de fevereiro, demandou que se declare lei marcial e que o batalhão Dombás e outras unidades paramilitares mobilizadas na repressão sejam autorizadas "a tomar medidas para eliminar" a quem denominou terroristas, segundo a agência UNN.
Semetchko reconheceu que na operação do Exército, forças de segurança e os grupos neonazistas mobilizados pelo partidos Setor Direito e Svoboda, foram registradas já mais três vezes vítimas humanas que nos protestos que derrubaram o presidente Víktor Ianukovitch.
Extremistas partidários de varrer a população de idioma russo do sudeste continuaram os bombardeios em algumas zonas, segundo denúncias das milícias das autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.
Os rebeldes se comprometeram também a respeitar a trégua, mas porta-vozes das tropas repressoras os acusaram de tê-la quebrado em múltiplas ocasiões, informou o canal ucraniano de televisão 24.
A Rússia reiteradamente tem denunciado que Kiev leva a cabo a sangue e fogo uma limpeza étnica nesses territórios, onde a ONU estimou em 110 mil o número de refugiados para o território russo, segundo a Rádio Libertem.
Um comunicado emitido pelo Serviço Estatal de Emergências da Ucrânia, entretanto, informou que 25 mil pessoas foram evacuadas para outras regiões a partir dos territórios devastados pelos bombardeios.
O líder da autoproclamada República Popular de Lugansk, Valeri Bolotov, denunciou que os governantes ucranianos têm planos de levar para as regiões do sudeste os habitantes do leste do país, partidários da ideologia ultranacionalista afins àqueles que derrubaram Ianukovitch.
Apesar do Wikileaks ter demonstrado com documentos que em 2006 Piotr Poroshenko foi informante da embaixada dos Estados Unidos na Ucrânia com relação às intrigas políticas dentro do governo da Revolução Laranja, o Rei do Chocolate conseguiu vencer a disputa eleitoral.
Os meios de imprensa ucranianos o apresentaram como o principal patrocinador econômico da Revolta de Maidán (epicentro dos protestos que desembocaram na derrubada de Ianukovitch), financiados por ele.
Sem a injeção de dinheiro de Poroshenko não teria sido possível o dispositivo organizado dos denominados grupos de autodefesa, nem dispor de comida, roupa, barracas e calefação para os manifestantes, bem como materiais para construir barricadas, segundo essas fontes.
Esta imagem de homem de negócios próspero, benfeitor dos manifestantes, sem o desgaste político de seu principal rival, a ex-primeira ministra Yulia Timoshenko, facilitou a vitória de Poroshenko.
No entanto, durante a campanha, Rossiskaya Gazeta escreveu que não devia ser descartado que as eleições presidenciais ucranianas aconteceriam somente depois de que Poroshenko estabelecesse o compromisso com Washington de nomear Arseni Yatseniuk como primeiro-ministro.
Uma conversa da subsecretária de Estado norte-americana Victoria Nuland, filtrada no YouTube deixou claro que Yatseniuk é o eleito pelos Estados Unidos para impulsionar suas ambições em Kiev.
Fiel aos desígnios estadunidenses, uma vez eleito, Poroshenko se apressou a ratificar Yatseniuk no cargo de chefe de governo, o que confirmou seu compromisso com a Casa Branca.
Mas outro "sabor amargo" reserva o capital internacional para o chefe de Estado ucraniano segundo a revista Forbes, que literalmente compara seu papel com o do ditador chileno Augusto Pinochet.
O colunista Iván Kompan estabelece em um artigo como denominador comum entre a Ucrânia do golpe patrocinado por Washington e pela União Europeia em fevereiro de 2014, e o Chile do golpe de Pinochet em 1973, "uma economia destruída, pobreza e desconfiança nas diferentes regiões do país".
Como diferença chave, Kompan aponta que "há 40 anos no Chile apareceu um estrategista que prometeu pouco, mas fez muito. É precisamente o que agora a Ucrânia precisa", em alusão a Poroshenko. Em um elogio ao neoliberalismo, o colunista qualifica como um grande mérito de Pinochet que "não teve medo de apostar em um grupo de graduados chilenos na Universidade de Chicago e em outras universidades estadunidenses.
Cobriu de elogios os chamados "Chicago Boys" e o ditador que lhes deu a possibilidade de implementar reformas econômicas neoliberais inclusive à longo prazo em detrimento de benefícios sociais, aos que qualifica de "populismo de curto alcance".
Kompan refere que a principal lição da história chilena não é o conteúdo das reformas, senão que seus autores e aqueles que a levaram a cabo, e faz votos para que surjam "Chicago Boys" ucranianos.
"Como o processo é bastante complicado, não poderá ser realizado sem um Pinochet ucraniano. Sem um Pinochet pode ser que não tenha nem reformas nem patriotas jovens que as criem", conclui ao deixar claro o modelo de "democracia" que Ocidente pede a Poroshenko.
*Correspondente da Prensa Latina na Rússia.
Fonte: Prensa Latina