Christopher Wadi: De Gaza, notícias do ventre da morte

Gaza é um cemitério de vivos. Aqui não é possível escapar à matança, o campo de tiro tem uma área de 320 quilômetros quadrados onde o mais difícil é não acertar simultaneamente num ou vários alvos do milhão e meio de entes disponíveis, cercados, concentrados. Sobretudo quando se ensaiam os novos ou renovados instrumentos de extermínio coletivo rotulados como meios avançados de “eliminação seletiva”. Gaza é, também e por isso, um laboratório de morte.

Por Christopher Wadi, de Gaza para o Jornalistas sem Fronteiras

Faixa de Gaza - Reuters

“Não temos para onde fugir, não sabemos como fugir, nem queremos fugir”, confessa Ghada, mulher de 35 anos, refugiada de nascença, mãe de cinco filhos, dois assassinados pelas ações israelenses de guerra. “A minha família é originária de Simsim”, prossegue “e teve de refugiar-se quando os israelenses arrasaram a aldeia, em 1948. Agora dizem que o lugar se chama Gevaran enquanto nós estamos confinados aqui, à espera da morte nestes lugares tornados infectos”.

“Aqui” é o campo de refugiados de Jabalia, um inferno quotidiano de dificuldades e incertezas nos arredores da Cidade de Gaza e que, como quinto maior campo de refugiados do mundo, é um alvo preferido das tropas israelenses pois alberga quase 200 mil "potenciais terroristas" do Hamas e afins.

Leia também:
Tropas de Israel e resistência entram em confronto na Faixa de Gaza
Solidariedade à Palestina reúne milhares em São Paulo contra massacre
Ofensiva terrestre de Israel agrava destruição na Faixa de Gaza
Ângelo Alves: O “conflito” na Palestina

“Agora mandam aviõezinhos de milhares de dólares bater nas portas para nos obrigaram a partir outra vez como refugiados, como se isso fosse um aviso humanitário”, afirma Mustafa, patriarca de uma família amputada em quase metade dos seus membros por operações israelenses durante e depois da ocupação do território de Gaza.

“Pois que venham e arrasem, daqui já não saio, a não ser para fazer companhia aos meus que já partiram. Tinha jurado que só haveria de abandonar este campo para regressar à minha aldeia de Najd, mas há mais de 60 anos que ela foi eliminada do mapa; agora os ocupantes chamam-lhe Sderot. Portanto podem ameaçar à vontade, executar-me sem julgamento, vir me pegar pela mão, podem até chamar-me escudo humano que não me mandam para o inferno porque no inferno estamos há muito tempo”, diz Mustafa sem um sinal de hesitação na voz.

Cheguei a Jabalia vindo de Khan Yunis, um pouco mais ao norte, cruzando um cenário de terror e destruição entre colunas de fumaça, explosões intermitentes, chamas espalhadas pelos recantos que a vista consegue percorrer. Em todos os locais habitados revolvem-se ruínas e sucedem-se enterros.
“Somos vítimas de uma engrenagem de extermínio humano”, acusa uma médica nórdica trabalhando em Jabalia no âmbito da UNRWA, a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos”. Ingrid considera uma “mentira cruel” a versão israelense de que se trata de uma operação militar para “eliminar comandantes terroristas”.

Em Jabalia, como no resto da Faixa de Gaza, não há água, a energia elétrica é apenas acessível a espaços, há falta de medicamentos, alimentos básicos escasseiam.

“As bombas chegam a nós do mar, da terra, dos ares; estamos sendo sobrevoados por enxames de drones que explodem e exterminam toda a vida a seu redor”, descreve Ingrid. “Sabemos que os operacionais do Hamas e outros grupos islâmicos salvaguardam as suas posições e o número das suas baixas é uma pequena minoria nos números da matança”.

Segundo a médica nórdica, citando números da UNRWA, o número de vítimas mortais dos mais recentes ataques israelitas aproxima-se de 200 [em 17 de julho; já são 530 nesta segunda (21)] e o de feridos já ultrapassa os mil. “Cerca de um terço dos hospitalizados são crianças; entre os mortos identificados estão, até agora, 34 crianças [quase 100, segundo números atualizados].

“Não consigo entender como os principais dirigentes mundiais, especialmente os da União Europeia, que tanto falam dos direitos humanos, conseguem ficar impávidos perante um extermínio organizado metodicamente através do funcionamento do mais eficaz laboratório terrorista destes tempos”, declara Ingrid. “Não há eliminações seletivas”, afirma a médica. “Cada vez que os israelenses montam uma ação para liquidar um suposto operacional da resistência morrem dezenas de pessoas, desaparecem famílias inteiras, numerosas casas são arrasadas”, acrescenta.

“Em Gaza, os que não estamos mortos apenas esperamos a nossa vez”, diz Hashem Kassim, um médico de Khan Yunis que se desdobra através de vários postos clínicos onde se prestam primeiros socorros e se organiza o envio dos feridos para o hospital de Shifa, em Gaza. “Socorremos hoje uma pessoa e ela, amanhã, pode sucumbir num outro ataque. Há poucas horas nada pude fazer para salvar a vida a duas crianças vitimadas pela onda de choque da explosão de um drone, engenhos programados para matar em massa – é importante que o mundo tenha a noção disso”.

“Pelo mundo fora parece que as pessoas se esquecem de que estamos cercados”, sublinha o dr. Kassim. “Como é que podem acreditar quando Israel diz que nos avisa antes de bombardear para escaparmos aos ataques? Se saímos de onde estamos só podemos ir para qualquer outro local onde continuamos a ser alvos. Esses avisos são uma mascarada para tentar disfarçar o indisfarçável, isto é, que está em curso, sob o nome de ‘barreira de proteção’, uma operação de extermínio e limpeza étnica”.

Fatma é uma enfermeira egípcia radicada há muitos anos em Gaza e que acompanha o dr. Kassim nas suas missões. "Lembro-me do rosto de cada criança que já vi morrer durante estas agressões israelitas para ‘matar terroristas’, mas não me pergunte quantas foram, o assassinato de uma só já seria crime imperdoável”, revolta-se.

“Repugna-me saber que a poucos quilômetros daqui, numa sofisticada base com todos os confortos, jovens pouco mais que adolescentes manejam estes aviões e as armas teleguiadas atrás de telas eletrônicas, como se fossem jogos de computadores, observando ao pormenor os rostos dos seres humanos que vão assassinando. Esta gente consegue sempre exceder o que supúnhamos ser os limites da degradação humana”, acusa Fatma.

Fonte: Jornalistas sem Fronteiras