Violeiros e cirandas: poesia improvisada

Este texto foi escrito a pedido do jornalista Aluízio Falcão como parte explicativa da coleção Música Popular do Nordeste, de 1975 (ela compunha um mapeamento musical do Brasil organizado com Marcus Pereira). Mais tarde, em 1997, foi publicado na revista Estudos Avançados.  

Por Ariano Suassuna  

violeiros
A poesia popular do Nordeste pode se classificar em dois grupos bem caracterizados: a literatura de cordel e a poesia improvisada dos cantadores. O nosso romanceiro é, sem dúvida, originário do ibérico, mas tem hoje fisionomia própria, inclusive pela riqueza e variedade das formas de estrofes usadas. Dessas estrofes, as mais utilizadas são a sextilha, a décima de sete sílabas e o martelo agalopado, décima de dez sílabas cuja estrutura é a mesma usada no século de ouro na Península Ibérica.
 
Tais estrofes são as mais importantes tanto nos romances quanto nos desafios da poesia improvisada, existindo ainda, porém, o mourão, o galope à beira-mar, o martelo gabinete (sextilha de dez sílabas) entre outras formas menos importantes. Entretanto, apesar de se tornarem cada vez mais raros, ainda encontramos no sertão alguns romances ibéricos ou iberizantes compostos na forma monorrímica.
 
A cantoria, ou desafio, é a forma usada para a poesia improvisada. Dois cantadores, de viola em punho, às vezes durante toda uma noite, improvisam à maneira dos tensons provençais. O que existe de melhor nesses desafios é o tom jocoso, satírico.
 
– Vá me buscar um carneiro 
que seja mocho e pelado, 
com uma estrela na testa, 
com os quatro pés manchados, 
de rabo branco e comprido 
e com o couro malhado.
 
– Meu colega, me desculpe, 
você errou o terreiro. 
Vá bater em outra porta, 
procurar noutro roteiro: 
encomenda como essa 
só feita ao pai-de-chiqueiro
 
Esse tom satírico e jocoso, aliás, reaparece também na literatura de cordel, nos romances compostos, impressos em folhetos e vendidos nas feiras. Os ciclos desse romanceiro podem ser assim agrupados: ciclos heróico; maravilhoso; religioso e de moralidades; cômico, satírico e picaresco; histórico e circunstancial; de amor e fidelidade. No ciclo cômico, satírico e picaresco reaparece o mesmo tom jocoso, às vezes beirando a obscenidade, como sempre acontece nas formas de literatura popular. Disso é exemplo a seguinte sextilha, do cantador paraibano Firmino de Paula e citada por Zita de Andrade Lima:
 
Atirou-lhe à queima-roupa 
porém naquele momento 
o menino desviou-se 
e veloz igual ao vento 
deu-lhe um grande pontapé 
no valor do casamento.
 
No ciclo heróico, constituído pelos romances épicos e trágicos e, principalmente, pelas gestas do cangaço, encontramos estrofes como esta:
 
O Alferes pegou do rifle, 
ficou o mundo tinindo, 
era o dedo amolegando 
o fumaceiro cobrindo 
batendo as balas em Vilela, 
voltando prá trás, zunindo.
 
Às vezes, porém, no ciclo heróico, no meio de um romance épico – ou em que se misturam o épico e o maravilhoso – como em A chegada de Lampeão no inferno, aparece o cangaceiro heróico, como se fosse um sansão sertanejo, armado com uma caveira de boi; o cantador aproveita para misturar ao tom heróico um acento cômico, como na seguinte estrofe de sete pés:
 
Lampeão pode pegar 
uma caveira de boi 
Sacudiu na testa dum, 
ele só fez dizer: Oi! 
Ainda correu dez braças 
e caiu, enchendo as calças, 
mas eu não sei do que foi!
 
No ciclo cômico, satírico e picaresco, encontramos, às vezes, títulos de sabor clássico como: A desventura de um corno ganancioso, que parece nome de um conto de Boccaccio. O que, aliás, não é de admirar, por encontrarmos, no romanceiro nordestino, devidamente versadas, a História de dona Genevra, tirada do Decameron, e a História de Romeu e Julieta. No ciclo do maravilhoso, encontramos histórias do tipo A moça que virou cobra e A mãe de calor de figo, como também todas "as pelejas em que o Diabo aparece". O Romance do pescador que tinha fé em Deus é do ciclo religioso e de moralidades. No ciclo histórico e circunstancial agrupam-se os comentários dos poetas populares aos acontecimentos do dia: é o caso do folheto A renúncia do presidente Jânio Quadros.
 
A importância do romanceiro popular do Nordeste é imensa e cresce a cada dia. Quando não sua forma, seu espírito está presente em toda a melhor literatura nordestina, bastando citar, no romance, o nomes de José Lins do Rego e Guimarães Rosa, ou de Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto, na poesia, entre os que criaram sua obra na linhagem do romanceiro para mostrar como essa literatura popular é importante para que se entenda a Arte brasileira e o próprio Brasil. É que, com a História de Carlos Magno e os doze pares de França e outros vestígios do romanceiro carolíngio, assim como com histórias européias, árabes etc., o romanceiro nordestino é uma espécie de ligação entre a tradição mediterrânea e o povo brasileiro de hoje.
 
Em sua poesia encontramos décimas quase surrealistas, como esta:
 
No tempo em que os ventos suis 
faziam estragos gerais 
fiz barrocas nos quintais 
semeei cravos azuis. 
Nasceram esses tafuis amarelos como cidro 
Prometi a Santo Izidro 
levá-los, quando lá for 
com muito jeito e amor 
em uma taça de vidro. 
Ou, então, martelos como este.
 
Quando as tripas da terra mal se agitam 
e os metais derretidos se confundem 
e os escuros diamantes que se fundem 
das crateras ao ar se precipitam 
as vulcânicas ondas que vomitam 
grossas bagas de ferro incendiado 
em redor deixam tudo sepultado 
só com o som da viola que me ajuda, 
treme o sol, treme a terra, o tempo muda 
eu cantando o martelo agalopado.
 
E um romanceiro que tem versos como este não precisa de mais nada para demonstrar importância.
 
Fonte: Estudos Avançados, Vol. 11, nº 29, Jaeiro/abril de 1997