Pepe Escobar: “Pura Guerra” em Teerã
Acabo de passar uma semana frenética em Teerã. Antes de partir, tomei uma decisão consciente: só um livro na mochila. Concentração máxima. Acabei por escolher Pure War,[1] na reedição da editora Semiotext(e), Los Angeles, do clássico de Paul Virilio, de 1983, que apanhara há alguns dias na [livraria] Foyles, em novo endereço, em Londres.
Por Pepe Escobar, Asia Times Online
Publicado 09/10/2014 16:36

Para correspondente itinerante, ir ao Irã é sempre extraespecial. Conseguir aprovação no visto de imprensa quase sempre demora eras. Era minha sexta viagem – e não tinha o visto. Só um número, atado a um visto no aeroporto. Até o último minuto, achava que seria deportado do Aeroporto Internacional Imã Khomeini – de volta a Abu Dhabi, aquela que, hoje, finge que bombardeia O Califa. Então, um pequeno milagre: sala VIP, visto em 10 minutos e depois disso só me lembro de já estar zunindo por uma Teerã completamente deserta, ao raiar do sol de uma 6ª-feira, passando pela frente de uma estação espacial psicodélica pintada de verde que é o santuário do Imã Khomeini.
Por que Virilio? Porque foi o primeiro a conceitualizar a noção de que, com a explosão de uma guerra assimétrica, a Guerra Total tornou-se local – em escala global. Discorri sobre isso em meu livro de 2007, Globalistan e em meus escritos. Washington e Telavive ameaçam bombardear o Irã, há anos. Virilio (Citações em itálico) foi o primeiro a dizer que a “paz” só faz estender a guerra por outros meios.
Bela manhã ensolarada, à frente do complexo do Ministério do Exterior. Uma exposição/instalação sobre a guerra Irã-Iraque – “imposta”, como todos sabem. Um campo minado reconstruído; um mapa das nações que armavam Saddam; fotos de jovens combatentes/mártires que não teriam mais de 14 anos. Um teatro de rememoração dolorida. No final de 1978, Teerã também teve suas multidões nas ruas como coro – contra o xá. Khomeini foi reação contra o consumismo; mas foi “poder da imaginação”? E então, tudo foi engolido num teatro de crueldade – a tragédia da guerra “imposta”.
Em Teerã, meus imensamente gentis anfitriões eram os organizadores de “Novo Horizonte: Conferência Internacional de Pensadores Independentes” [orig. New Horizon: the International Conference of Independent Thinkers]. Depois de muitas idas e vindas, o Ministério de Relações Exteriores acabou por também se envolver. A conferência distribuiu uma importante resolução, condenando o ISIS/ISIL/O Califa; o sionismo; a islamofobia, o sectarismo; e o apoio cego que Washington garante a qualquer tipo de ataque que Israel lance contra a Palestina: a delinquência nacional de Israel, ou terrorismo de Estado. A conferência também conclamou a uma maior cooperação e entendimento entre o Ocidente e o Islã: implica lutar contra as delinquências interestatais.
Tive de deixar um fabuloso jantar tradicional persa a céu aberto, para ir para os estúdios da Press TV para um debate com o notório conservador Daniel Pipes sobre ISIS/ ISIL/ Daesh. Surpreendentemente, concordamos mais do que eu esperaria. Bem, nem tão difícil, se se considera a “estratégia” de nada-de-estratégia do governo Obama; uma imagem (bombas e mísseis Tomahawks), em luta contra outra imagem (o show de degola que O Califa editou cuidadosamente).
Enquanto isso, o discurso do presidente Hassan Rouhani na ONU continua a provocar ondas: “Extremistas ameaçam nossos vizinhos, recorrem à violência e derramam sangue”. “Quem pode vencer é o povo da região”, na luta contra O Califa. Rouhani não se referia exatamente aos jatos made in USA alegadamente usados pela coalizão dos sem noção/covardes do Conselho de Cooperação do Golfo; Casa de Saud, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e a Jordânia, membro-associado.
Em todas as conversas que tive, um consenso emerge; o vácuo de poder do pós-Choque e Pavor de 2003 e da ocupação levou à ascensão da al-Qaeda no Iraque e, dali, ao ISIS/ ISIL/ Daesh. Mas mesmo que Teerã e Washington possam ter flertado sobre movimento conjunto contra O Califa, Washington depois negou que quisesse ajuda e Teerã rejeitou tudo.
Ainda assim, o que Rouhani disse em New York continua ecoando todos os dias, por toda parte, em Teerã; armar o “novo” Exército Sírio Livre na Arábia Saudita, e logo lá, é como “treinar outro grupo de terroristas e enviá-los para lutar na Síria”. E a “estratégia” de Washington está capacitando cada vez mais ditadores sunitas que fizeram carreira demonizando xiitas.
E então entrou em cena o outro Califa “não oficial”, o neo-otomano Recep Tayyip Erdogan; nada de usar “território” ou “bases militares” da Turquia, para a “coalizão”, se “os objetivos não incluírem a derrubada do regime de Bashar al-Assad”. Quem precisa do Califa Erdogan para dar combate ao Califa Ibrahim? O major-general Qassem Suleimani, comandante da Força Iraniana Quds, pode fazê-lo; a fotografia dele, ao lado de guerrilheiros peshmergas curdos causou sensação em todo o Irã, quando exibida na Rede de Notícias da República Islâmica do Irã [orig. Islamic Republic of Iran News Network (IRINN)].
A alegria do parque Laleh – um parque persa riscado em todas as direções por gatos persas e exímios jogadores de voleibol e badminton e famílias empurrando carrinhos de bebê. É onde Arash Darya-Bandari, extraordinário medievalista, com muitos anos passados na Bay Area, dá-me curso intensivo sobre os detalhes de uma grande narrativa sobrevivente; o xiismo e o conceito de Khomeini de velayat-e-faqih. Em termos de Pura Não Guerra, tudo tem a ver, sempre, com justiça social. Por isso é ininteligível para o turbocapitalismo.
O parque como ágora; um jardim de delícias intelectuais. Praticamente todas as minhas principais conversas aconteceram em caminhadas por dentro ou à volta do parque Laleh. E então, uma noite, saí para uma caminhada solitária, e encontrei um filme/performance revolucionário, num palco improvisado, completado com uma trincheira e morteiros. Público de alguns homens solitários e algumas famílias espalhadas pela praça. O cinema, mantendo viva a consciência da guerra Irã-Iraque.
A Conferência “Novo Horizonte” só poderia ser sobre guerra de informação. O tema geral foi a luta contra o lobby sionista. Todos sabem o que significa o lobby e como opera, especialmente nos EUA. Mas, em minhas breves intervenções, no Ministério de Relações Exteriores e na Conferência, preferi focar o alcance financeiro/econômico global do lobby. É o único modo de furar a armadura aparentemente invencível do lobby.
Outra face da guerra de informação. Por todos os lugares por onde andei tive o prazer de ver que o livro de Gareth Porter – Manufactured Crisis: The Untold Story of the Iranian Nuclear Scare – foi recebido como uma bênção. O livro foi traduzido para o farsi pela Agência Fars de Notícias em apenas dois meses, com cuidado meticuloso, e lançado numa cerimônia simples.
O livro está destinado a tornar-se best seller – e demonstra conclusivamente, por exemplo, como o “complô” iraniano para equipar mísseis com ogivas nucleares foi integralmente fabricado pelo grupo terrorista Mujahedin-e Khalq (MEK) e na sequência passado para a Agência Internacional de Energia Atômica, pelo Mossad. Comparem-se o respeito com que Gareth é tratado em Teerã e a muralha de silêncio que cercou o lançamento do livro nos EUA – mais um reflexo da “selva de espelhos”, que já dura 35 anos, que opõe Washington a Teerã.
Como se poderia prever, os imbecis analfabetos nos EUA disseram da Conferência que seria um “festim de ódio antissemita”. Gareth foi descrito como “jornalista anti-Israel” e eu como “jornalista brasileiro anti-Israel”. Obviamente o inferno dos imbecis não está familiarizado com o conceito de “política exterior”.
Hora de ir ao bazar – a definitiva distribuição urbana de território. Na entrada principal, um grupo agita calculadoras e pedaços de papel, envolto numa gritaria incrível. A piada, com Roberto Quaglia – autor que desmontou completamente a saga do 11 de Setembro – é que a coisa parece mercado de escravos. Nada disso. É nada menos que um mercado de futuros, sobre o desempenho do rial. Com a moeda nacional flutuando muito por causa das sanções – perdeu ¾ do valor nos últimos poucos anos – a chance de ganhar uma bolada é irresistível.
Encontramos a bela Zahra – vende toalhas feitas à mão, mas é, mesmo, tremenda fotógrafa de moda. E, então, o ritual que amo desde sempre: andar à procura do tapete tribal perfeito. Nesse caso, um Zaghol dos anos 1930, que não será jamais reproduzido, porque os nômades locais estão ficando sedentários e não há novos tecelãos. Um caso de distribuição de território que se vai convertendo em distribuição de tempo (perdido).
O que nos leva, mais uma vez, às sanções. Muito está rendendo o que Rouhani disse ao presidente da Áustria, Hans Fisher, na ONU – sobre o Irã estar pronto para entregar gás à União Europeia. Não vai acontecer amanhã; o último número que obtive, em Teerã, é que o país precisaria de pelo menos US$ 200 bilhões em investimentos para atualizar sua infraestrutura de energia. Rouhani foi obrigado a esclarecer o que dissera. E Teerã não vai vender-se a preço de liquidação à União Europeia.
O fim das sanções tem tudo a ver com a cronopolítica.
Teerã pensa sobre a máquina louca, sem parar. Fui mais ou menos “sequestrado” de uma reunião e acabei num pequeno think-tank, com um fabuloso mapa na parede, no qual se detalham os centros de comando dos EUA. Todos os estudantes só querem saber o que o Império está realmente querendo do Irã.
Uma visita ao “Ninho de Espiões” – a antiga embaixada dos EUA – é também inevitável. Uma apoteose de tecnologia dos anos 1970s – imaculadamente preservada como em nenhum outro lugar do mundo; equipamento de rádio, proto-computadores, telefones, telexes, uma “sala de falsificação”, para produzir passaportes falsos. Não surpreende que Washington nunca se tenha recuperado da perda desse ponto privilegiadíssimo de escuta de todo o Oriente Médio. Esse prédio algum dia será uma embaixada “normal” dos EUA? Alguém poderia perguntar àquele Hamlet caipira que por pouco não virou o bombardeador maluco.
O último dia tinha de guardar uma epifania. Esperei por ela todo o dia – entre entrevistas e um fabuloso almoço indiano no norte de Teerã com Gareth e o Dr. Marandi da Faculdade de Estudos Mundiais, da Universidade de Teerã; o banquete platônico ideal de convivialidade e intelecto. E então, à noite, uma corrida maluca até o santuário em Rey; bairro de operários, pedra fundacional de Teerã, um dos mais importantes locais de peregrinação no Irã, como Qom e Mashhad.
A iluminação estética sobrecarrega os sentidos, acrescenta-se ao impulso espiritual – com impulso extra, porque se pode dizer que o único ocidental ali, era eu. Dezenas de milhares de peregrinos homenageiam ali a morte do enteado do Imã Ali. Quem falou de morte das grandes narrativas? No Irã profundo, continuam vivas.
E depois, começa tudo outra vez, como num sonho de Coleridge; terei sonhado eu esse fugidio interlúdio persa, ou Teerã sonhou um pequeno sonho de mim? E logo estou de volta ao meu modo-padrão – passageiro-em-trânsito essencial; tapete nômade, mochila e bilhete de embarque. Próxima parada, uma cidade sem rosto, numa intersecção da velocidade.
Nota dos tradutores
[1] VIRILIO, Paul; LOTRINGER, Sylvester [1982], Guerra pura. A militarização do cotidiano. Trad. Elza Minet e Laymaert Garcia dos Santos, São Paulo: Brasiliense, 1984. Introd. Laymaert Garcia dos Santos.
*Jornalista brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
– Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
– Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
– Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
Seu novo livro, Empire of Chaos, será publicado em novembro/2014 pela Nimble Books.
Fonte: Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu