Lucas Melgaço: "Coxinhas, Black Blocs e Eleições"
Foram as manifestações de junho de 2013 de esquerda ou direita? Resposta: ambas. Numa combinação inusitada, vimos posições muito diferentes nas ruas, simbolizadas pela copresença de dois extremos: “coxinhas” e “black blocs”. Um dos poucos pontos de convergência entre esses grupos foi a reação à posição mais “centrista” do governo federal.
Por Lucas Melgaço, publicado no Brasil Debate
Publicado 30/10/2014 09:58
Quando se pensa em um protesto, a primeira ideia que normalmente vem à cabeça é aquela de mudança, de transformação. Dificilmente alguém imaginaria um grupo se mobilizando e saindo às ruas para protestar pela permanência de algo.
A exceção a essa regra seriam as situações em que o protesto irrompe como reação a outras manifestações por mudança, uma forma de “contraprotesto”. Esse é o caso, por exemplo, do movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma resposta conservadora durante o período pré-ditatorial a mudanças consideradas como “ameaças” progressistas.
Quanto às Jornadas de Junho de 2013, porém, parece claro, ao menos para mim, que acompanhei tudo de fora do país, que aqueles foram autênticos protestos por mudanças.
Não me representa?
Naquele momento poucos ousariam prever, contudo, que um ano mais tarde políticos como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano seriam não apenas reeleitos deputados federais, mas também seriam, respectivamente, o mais bem votado pelo estado do Rio de Janeiro e o terceiro com maior número de votos por São Paulo.
A surpresa advém do fato de que em boa parte das manifestações havia cartazes e gritos pedindo “Fora Bolsonaro” e “Feliciano, você não me representa”.
Tão marcantes quanto as manifestações contrárias a esses dois políticos foram as demandas que clamavam por menos corrupção. Tais gritos foram, todavia, igualmente ineficientes para impedir a reeleição de políticos como Fernando Collor, eleito senador por Alagoas, e a eleição de Renan Filho, filho de Renan Calheiros, ao posto de governador daquele mesmo estado.
Demandas de junho
Fatos como esses citados levaram José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais (Inesc) a defender que seria como se as manifestações de junho não tivessem ocorrido. A demanda por mudanças não teria, assim, tido reflexo significativos nas urnas. Teria sido isso verdade?
Para responder a essa indagação é preciso antes levantar outra questão, apesar do risco do seu reducionismo dualista: foram as manifestações uma mobilização de esquerda ou de direita? A melhor resposta seria: foram ambas.
Aquilo que começou como reação ao aumento das tarifas do transporte público, e que escalou com a indignação coletiva à forma violenta como a polícia reagiu aos protestos, logo se desdobrou e passou a incluir pautas diversas como os gastos com a preparação para a Copa do Mundo e o fim da corrupção, além de várias outras reinvindicações nem sempre concordantes.
Numa combinação inusitada, vimos um conjunto de posições muito diferentes nas ruas, o que pôde ser simbolizado pela copresença de dois extremos: os “coxinhas” e os “black blocs”.
Centrismo
O que teria levado perfis tão distintos às ruas? Eu ousaria responder que um dos poucos pontos de convergência entre esses grupos tão díspares foi a reação à posição mais “centrista” do governo federal nos últimos anos.
Por um lado, esse “centrismo” motivou o protesto daqueles que consideravam que o governo não era suficientemente de esquerda. Tal posicionamento é absolutamente compreensível quando se olha, por exemplo, os lucros recorde dos bancos nos anos do governo do PT. Além disso, apesar de avanços em relação à democracia, especialmente com uma evidente diminuição das desigualdades no país, alguns esperavam do governo petista uma postura mais radical.
Por outro lado, grupos mais alinhados com uma postura neoliberal viram naquela agitação uma oportunidade para protestar mais à direita do governo. A demanda por menos corrupção, prática incrustrada na forma de se fazer política no Brasil desde muito antes da ascensão do PT ao poder, passou a ser um dos motes daqueles que viram nos protestos uma oportunidade de fazer oposição à administração petista.
Interpretação simplista
Essa interpretação trazida aqui, apesar de fácil, talvez seja, porém, por demais simplista. Entre os extremos “black bloc” e “coxinha” houve uma grande gama de posicionamentos que inclui até mesmo partidários do próprio PT que saíram às ruas tanto para se posicionar contra a “ameaça coxinha”, quanto para protestar contra governos locais de outros partidos, como no caso do governo tucano em São Paulo.
Fato é que as manifestações foram complexas e multifacetadas. Essa heterogeneidade permitiu uma certa “maleabilidade” na interpretação dos protestos, algo que a grande mídia soube de forma oportunista explorar.
Foi emblemático o caso de Arnaldo Jabor que, inicialmente, tentou desmerecer a importância política das manifestações e logo em seguida se deu conta da oportunidade para se fazer uso dos protestos como crítica ao governo.
Oportunismo semelhante pode ser visto na montagem circulada esta semana em favor do candidato Aécio Neves e que coloca as manifestações como um grito coletivo contra a corrupção no governo petista.
Uma balela, já que se sabe que tais gritos não foram os da maioria e que brados contra a corrupção tucana também fizeram parte dos protestos. Porém, talvez pela primeira vez na história brasileira, a grande mídia teve e vem tendo a oposição firme de mídias alternativas que, apoiadas pelas facilidades trazidas pelas redes sociais, puderam interpretar as manifestações à sua maneira e reagir a esse tipo de manipulação.
Voltando aos resultados das urnas, deve-se destacar que não só “bolsonaros” e “felicianos” marcaram o primeiro turno das eleições. O Rio de Janeiro, por exemplo, ao mesmo tempo em que elegeu Bolsonaro, teve como seu deputado estadual mais bem votado o candidato Marcelo Freixo, do PSOL, figura marcante nas Jornadas de Junho e representante de boa parte das pautas consideradas à esquerda.
Além disso, em contraponto à reeleição do religioso Marco Feliciano, a Câmara dos Deputados contará mais uma vez com seu opositor, o deputado federal Jean Wyllys.
Brancos, nulos e abstenções
Para além desses casos mais pontuais, dois aspectos parecem ter sido reflexo mais direto das Jornadas de Junho. O primeiro é o aumento da porcentagem de votos brancos, nulos e abstenções, quase um terço da população, o que indica uma mensagem de que parte considerável dos brasileiros busca por algo diferente e que nenhum dos grandes partidos políticos parece representar.
Além disso, a cisão dos protestos entre “esquerda” e “direita”, por mais reducionista e simplista que possa ser, parece estar se refletindo na divisão do País entre os que neste segundo turno apoiam, respectivamente, Dilma e Aécio.
Passadas as eleições, os protestos e a luta por mudanças mais à esquerda do que tanto PT quanto PSDB apresentam, mudanças por um país ainda menos desigual e injusto deveriam prosseguir.
*Lucas Melgaço é geógrafo, pesquisador e professor no Departamento de Criminologia da Vrije Universiteit Brussel, Bélgica