Reinauguração: Cine-Teatro São Luiz é uma vitória para o povo cearense

Uma noite histórica para as artes e para a preservação da memória e do patrimônio material e imaterial de um povo. O Cine São Luiz foi devolvido ao público na última segunda-feira (22/12) com uma programação especial que lotou o equipamento, fechado há quatro anos.

Inaugurado em 26 de março de 1958, o cinema foi reaberto a três dias do Natal de 2014 como um grande presente para os cearenses e em formato de um cine-teatro, com adaptações para funcionar como sala de exibição de filmes e também palco para outras tantas linguagens artísticas – o teatro, a música, a dança, o circo.

No hall de acesso com revestimentos em mármore, sob os lustres de cristal checos e entre escadarias de ferro que tornam o prédio imponente desde a entrada, a plateia foi acolhida pelos cantores líricos Franklin Dantas e Giovana Bezerra interpretando a “Ave Maria”, do francês Charles Gounod, além de canções tradicionais natalinas. No palco principal, agora ainda maior, o público teve a oportunidade de ouvir os músicos da Orquestra de Câmara Eleazar de Carvalho executando duas peças de Alberto Nepomuceno, “Batuque” e “Rigaudon da Suíte Antiga”, além de uma composição do próprio maestro, o cearense Arthur Barbosa, “Toada e Desafio”.

Foi uma noite de comemorações. A orquestra que se dedica à formação de plateia para a música de concerto completava 18 anos nesse dia 22 de dezembro homenageando o compositor, pianista, organista e regente cearense, considerado o "pai" do nacionalismo na música erudita brasileira e que faria 150 anos em 2014. Mas a maior das comemorações era do próprio público, ao receber um Cine-Teatro São Luiz completamente restaurado, recuperado e renovado em assentos, climatização e sistemas de luz, som e projeção de impressionar ao espectador mais exigente.

A qualidade de áudio e imagem passou pelo principal teste: o olhar, os ouvidos e a sensibilidade da plateia que compareceu à reinauguração do equipamento. Ela conferiu o documentário de Joe Pimentel sobre o Cine São Luiz e, na sequência, a exibição do filme “Anastácia, a princesa esquecida”, do ucraniano Anatole Litvak, a mesma película apresentada ao público na noite de inauguração da sala de cinema, há 56 anos. Era o fim.

O documentário de Joe Pimentel reuniu pesquisadores, como Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, Ary Bezerra Leite e Christiano Câmara; o dramaturgo Ricardo Guilherme; o cineasta Rosemberg Cariry; o compositor, arquiteto e urbanista Fausto Nilo; o arquiteto Robledo Duarte; o cinéfilo Raimundo Carneiro de Araújo, o Seu Vavá; e o projecionista José Natal.

No documentário, Rosemberg Cariry traduz um sentimento coletivo: a (re)inauguração do Cine-Teatro São Luiz é uma vitória para o povo cearense. “Eu jamais imaginei estar de novo aqui dentro, em um lugar tão aconchegante. Que continue essa frequência de pessoas de valores, que se mantenha essa estrutura”, disse, entusiasmada, a aposentada Maria José Serra, antes mesmo de ouvir o depoimento do cineasta.

O Cine São Luiz começou a ser construído em 1938, por iniciativa de um cearense que fez carreira como empresário do cinema, Luiz Severiano Ribeiro, e só foi concluído 20 anos depois. Em outubro de 2007, o prédio foi arrendado à Federação do Comércio do Estado do Ceará, passando a funcionar como Cine São Luiz – Centro Cultural Sesc Luiz Severiano Ribeiro. O imóvel esteve sob ameaça de ter outras destinações, extinguindo-se como sala de cinema, até que, em outubro de 2011, foi adquirido pelo Governo do Estado do Ceará e, três anos depois, está sendo entregue à população.

A restauração e recuperação do equipamento, que já havia sido tombado pelo Governo do Estado em 1991, bem como as adequações para a configuração de um cine-teatro, demandaram 12 meses e o investimento de R$ 15,2 milhões. O que não tem medida é a sensação de devolver à população um equipamento que faz parte da memória afetiva de tantos cidadãos e cuja beleza arquitetônica também se revela imensurável.

O secretário da Cultura, Paulo Mamede, definiu o sentimento de entregar a obra como “uma felicidade incalculável”. Em agradecimento aos parceiros da empreitada, o secretário lembrou que cada operário deixou um pouco do seu suor para “transformar ruínas em um templo sagrado” e finalizou saudando o público. “Muito obrigado a cada pessoa que veio aqui. Vocês estão participando de um momento histórico”.

Um tempo para ser revivido

Parte da plateia que compareceu ao novo Cine-Teatro São Luiz nessa segunda-feira (22) reviveu a noite de inauguração do equipamento, em 26 de março de 1958. Ainda pela tarde, o Museu do Automóvel estacionou em plena Praça do Ferreira, defronte ao prédio para onde convergiam todos os olhares, quatro carros antigos, que faziam os transeuntes voltarem no tempo.

Um Lincoln modelo cupê de 1956, um Cadillac conversível de 1954, uma Limousine de 1940 e um Gardner modelo Roadstar de 1927 ditavam um clima retrô que mais tarde o público veria também na grande tela do equipamento restaurado, ao assistir o filme ”Anastácia”, de 1956, estrelado por Ingrid Bergman.

O luxo daqueles carros não condiz mais com o perfil do público que o Cine São Luiz passou a ter ao longo do tempo. Há 56 anos, quando surgiu, o Cine São Luiz era anunciado como “o mais moderno e luxuoso cinema do Norte do País”. Agora, como um cine-teatro, o prédio mantém a sua imponência, mas com acesso bem mais democrático. “A nossa memória afetiva com o Cine São Luiz surge mais efetiva agora, porque, antes, ele pertencia a uma elite, e hoje ele pertence ao povo do Ceará”, comparou o secretário da Cultura, Paulo Mamede.

Enquanto a reinauguração do equipamento teve entrada gratuita, a inauguração em 1958 não custou pouco a quem quis dela participar. “O acesso era pago e o preço era bem salgado para aquele tempo”, lembra o médico Manoel Simões da Cunha, hoje aos 77 anos. Na época, ele era primeiro tenente da Aeronáutica e tinha 21 anos, mesma idade da noiva, Maria Deusanira Mourão, a quem quis presentear com um ingresso na exuberante sala de cinema, logo no dia da inauguração.

“É uma felicidade muito grande relembrar aqueles dias em que estávamos noivos e participamos da inauguração”, revela a esposa Deusinha, como é conhecida. “Foi um dia tão lindo! Todos de roupa de gala, muito elegantes… O ambiente festivo foi o que nos chamou mais a atenção. Era um clima de muita alegria e felicidade”, rememora Manoel. “Foi uma noite inesquecível”, resume Deusinha.

O historiador Newton Ventura Júnior nasceu 11 anos depois da inauguração do Cine São Luiz, mas fez questão de assistir à reinauguração. Ele desenvolveu uma forte relação de afeto com o cinema ao ouvir muito o pai falar da experiência de ter comparecido à abertura da sala e dos primeiros anos dela. “Meu pai gostava muito de cinema. Ele morava na Rua 24 de Maio e vinha a pé para o Cine São Luiz, sempre de paletó e chapéu, como os outros homens. As mulheres também vinham muito alinhadas. As matinês, aos domingos, eram como um evento social”, conta, a partir dos relatos do pai, falecido em 1995.

A aposentada Maria de Nazaré Carvalho, 67 anos, lembra que, enquanto criança, também não perdia as matinais aos domingos, às 8h e às 10h. “Eu me lembro bem que tinha o Juizado de Menores na porta – havia um rígido controle de idade. Eu sempre ia acompanhada pela minha mãe ou por vizinhas”. Quando foi crescendo, passou a frequentar as matinês, à tardinha. “Era tudo muito solene, os homens só entravam de paletó”.

Estimulada pelo pai a gostar das artes, Nazaré encarava o cinema àquela época como mais uma fonte de conhecimento do que mesmo de entretenimento. “Os filmes eram escolhidos a dedo, com maestria. Eles exploravam a história do mundo. Era uma aula que estávamos tendo”, compara. Ela recorda a série austríaca produzida em 1955, 1956 e 1957, sobre a imperatriz Elisabeth da Áustria (1837-1898), conhecida como Sissi – “Sissi”; “Sissi, a imperatriz”; e “Sissi e seu destino”. Lembra também dos filmes brasileiros estrelados por Oscarito, como “Aviso aos navegantes”, de 1950, e “13 cadeiras”, de 1957, além de clássicos universais, como “Os dez mandamentos”, também de 1957, “Bem-Hur”, de 1959, e “Cleópatra”, de 1963. Todos assistidos no Cine São Luiz.

A reinauguração, agora como cine-teatro, atiçou lembranças de um tempo em que havia um outro Centro e uma outra cidade. “Quando o São Luiz foi inaugurado, nós podíamos sair à noite para lanchar no entorno da Praça do Ferreira”, rememora Maria José Serra. O Centro tinha lojas elegantes e a Praça do Ferreira era ponto de encontro para discutir política, economia, cultura, esportes. “Era onde se reuniam os intelectuais”, completa, aos 74 anos, o marido Gerardo Serra, que compareceu à inauguração do Cine São Luiz. “Para frequentar o cinema, era obrigado o uso do paletó”, lembra ele, que em 1964 começou a namorar na sala de cinema a mulher com quem se casaria quatro anos depois.

Durante o dia, os rapazes se dirigiam para a Esquina do Pecado, onde ficavam de prontidão para ver as normalistas da Escola Normal passarem enquanto o vento levantava as saias das menos precavidas. Era rumo à Praça que as pessoas se deslocavam para saudar o ano novo, ouvindo as badaladas do relógio da antiga Coluna da Hora.

Mais recursos para a Cultura

O governador eleito do Ceará, Camilo Santana, compareceu à solenidade de reinauguração do Cine-Teatro São Luiz representando o atual governador Cid Gomes, que precisou viajar às pressas a Brasília, a convite da presidenta Dilma Rousseff. Na ocasião, o governador eleito enfatizou a importância e o potencial do equipamento para a requalificação do Centro de Fortaleza.

Durante a reinauguração, Camilo também reassumiu publicamente o compromisso de investir 1,5% do orçamento estadual na área da Cultura. De acordo com a execução orçamentária de 2013, o valor destinado à Secretaria da Cultura, R$ 52.739.782,64, corresponde a 0,34% do total geral de R$ 15.485.606.199,02. O secretário Paulo Mamede aproveitou a oportunidade para enaltecer a disposição do governador eleito em aplicar o percentual de 1,5% para a Cultura e afirmou que está deixando para o próximo gestor da pasta cerca de R$ 30 milhões captados junto a organismos públicos e privados.

O mesmo valor foi anunciado pelo prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, também presente à reabertura do Cine-Teatro São Luiz, para recuperação de praças, calçadas e fachadas de prédios históricos do Centro da cidade. Ele prometeu ainda a criação de mercados populares para tratar o problema do avanço desordenado do comércio ambulante no bairro, combatendo as causas, não as consequências. O prefeito considera o novo Cine-Teatro São Luiz um belo presente de Natal para a cidade, “uma joia rara recuperada”.

Fonte: Secult