Jorge Panzera, 44 anos de resistência e luta

Eneida Guimarães - Eneida
Jorginho, filho querido,

No dia 22 de novembro de 1971, período em que morávamos em Itanagé – Distrito de Livramento de Nossa Senhora (denominação à ocasião) situado no Estado da Bahia, você foi registrado no cartório local do Oficial Vital Antônio de Caires, assim como seu irmão mais velho Mauro Panzera.

Muito embora, Jorge Panzera seu nascimento transcorrera no dia 14 de janeiro daquele mesmo ano, às 02h00min horas da manhã no Hospital Distrital de Livramento de Nossa senhora sob o acompanhamento, como parteiro, do médico Dr. Emerson, um filho da terra recém formado. Você, nascido de parto normal trouxe muitas alegrias naqueles idos em que vivíamos a mais ferrenha clandestinidade e distanciados dos nossos entes familiares, sob força da exigência de garantir maior segurança ao trabalho revolucionário. Dias antes, 11 de novembro, consagramos o casamento civil do Nelson com a Isabel (codinomes dos seus pais à ocasião) testemunhado pelo que viria a ser seu padrinho, José Carmelino dos Santos. Ainda no Hospital, descobri que você tinha marcas (uns furinhos) desenhadas na altura do ombro – fiquei deslumbrante. Tudo que ocorria nos emocionava à vida e impulsionava a lutar para que a sociedade oferecesse mais oportunidade e uma vida melhor a todos/as.

Nesses idos, nunca vivenciei um resguardo para a mulher parida em condições de clandestinidade, e, assim que tive alta seu pai providenciou que uma rural que fazia o transporte de pessoas de Livramento à Itanagé fosse nos apanhar no hospital, e rumamos para nossa casa. Chegamos tarde (a condução não estava ao nosso dispor particular), pois só viajamos após a lotação estar completa, daí termos chegado já noitinha em casa. Seu pai havia comprado um pão, fritou um ovo – esse foi o nosso jantar. Então, não houve galinha ao molho e pirão de mulher parida, aliás em nenhuma das vezes que pari bons filhos que tenho.

Mas, era uma satisfação imensa ter mais um filhote em casa para criar!

A lembrança de seu nome ocorreu em homenagem a um camarada da Bahia, à época dirigente da Ação Popular (AP agremiação que seu pai e eu pertencíamos). Um brilhante revolucionário, o qual havia conhecido durante uns meses que passamos a morar em Salvador. O Jorge Leal era engenheiro eletricista da Petrobras na Refinaria Mataripe sendo demitido em 1964 diante da sua atividade política em oposição ao Regime Militar. Trabalhou ainda na Companhia de Eletricidade da Bahia – COELBA. Ele era pai de três meninos e sua esposa Ana Néri estava grávida, vindo a nascer uma filha que ele jamais conhecera.

Durante as discussões de incorporação de AP ao Partido Comunista do Brasil – PCdoB ocorridas desde meados dos anos de 1970 (a Bahia vanguardeou esse evento) eu participei de uma reunião dirigida por ele onde esse debate fora introduzido – tenho nítida lembrança, eu sentada com o Mauro no colo, um bebê de poucos meses, numa dessas reuniões clandestinas e o Jorge a falar sobre a exploração capitalista e a necessidade da existência de um partido de classe para dirigir o processo revolucionário. Logo após a citada reunião, o camarada Jorge Leal fora deslocado para o Rio de Janeiro. Em poucos meses de atividade no Rio foi sequestrado pelos agentes do DOI-CODI/RJ e levado ao Batalhão de Polícia do Exercito onde foi interrogado e torturado até findar sua brilhante vida revolucionária.

O destino de seu corpo jamais foi revelado, embora sua morte fosse confirmada por um general entrevistado pelo jornal Folha de S. Paulo circulado em 28/01/1979. Seu nome consta entre os 136 casos de desaparecidos elencados no Dossiê dos Direitos Humanos dando origem a Lei 9.140/95 que marca o reconhecimento pelo Estado Brasileiro de sua responsabilidade pelos crimes cometidos durante o período de 1961-1988. Há pessoas que depois de mortos você não chora em vão, com a concretude de sua alma lamenta a ausência, tem saudades do que ficou, e venera com orgulho pelas lembranças que a querida personalidade deixou em vida. É o caso de Jorge Leal Gonçalves Pereira.

Você, Jorge Luis Guimarães Panzera merece o nome que escolhemos, responde na plenitude de sua vida desde a direção estadual do PCdoB Pará à altura do porte político de um Jorge Leal com seus próprios feitos, dedicação e decisões na atualidade procurando articular o seu papel de dirigente político, filho, amante de sua esposa Dia Favacho e pai da neta Clarice e do neto Dionísio tão queridos do meu coração.

Já decidido o nome que você viria a ganhar, após o seu registro civil, seguiram-se poucos anos e logo registramos também no mesmo cartório seu irmão caçula, o Maurício Panzera. Com o desenvolvimento das relações sociais em Itanagé ampliando nosso leque de amizades na conquista de confiança que devíamos incidir ao povo, decidimos batizar os três filhos. O fato ocorreu numa das festas anuais realizadas pela Paróquia de Nossa Senhora do Livramento do Brumado. À época era costume, os pais da localidade escolherem como padrinhos de seus filhos os únicos dois proprietários de terra regadas de rio do lugar. Isso significava poder, o que possibilitava a todos plantarem o arroz a meia, nas terras do compadre engordando seus ganhos. Daí, o padrinho pagava todas as despesas do batizado: a igreja, as roupas do afilhado de batismo, e depois desfilávamos nas ruas do lugarejo acompanhados por uma banda, também à custa do padrinho. Foi uma surpresa no Distrito quando apresentamos às vésperas da festa. Procedemos visitando casa a casa, convidando três casais para serem nossos compadres e comadres. Diferente do costume local, nós convidamos trabalhadores/as que assim como nós, além de alguma outra atividade, plantavam o arroz à meia nas terras dos dois únicos proprietários de terra, sendo moradores comuns.

No seu caso, Jorge Panzera convidamos o negro e amigo Carmelino que também era barbeiro e sua esposa Lucila para serem seus padrinhos. Recentemente em 2010, quando voltei a visitar Itanagé, me hospedei na casa dela, da comadre Lucila. Na atualidade ela é viúva. Ela lembra-se de quando nos dias de feira, você, ainda tão pequenininho ficava aos cuidados dela enquanto eu ia entregar alguma costura de encomenda e seu pai ficava na barraca vendendo as bugigangas, consertando relógio. Assim, nós tirávamos o sustento para o lar, e depois aproveitávamos também para fazermos a feira da semana.

Pouco tempo após a citada festa de batizado, ainda na década de 1970 deslocamos de Itanagé para o mundo, com rumo ignorado. De lá saímos para São Paulo com as roupas do corpo e os filhos orientados pela direção do PCdoB diante da queda da Guerrilha do Araguaia no sul do Pará e o recrudescimento da repressão que avançava as áreas de conflito nos campos do Brasil não deixando rastro de pó dos opositores da ditadura. As forças reacionárias de plantão no país, sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974) exerceram ao extremo a lei do extermínio. Apavorados, mas confiantes no futuro vivemos uns poucos meses na Ilha Bela em São Paulo em companhia do Euler e da Isaura. Após, passamos por Belém onde eu fiquei a morar no Outeiro por alguns meses com vocês três numa casinha de madeira próximo da praia. Enquanto isso, seu pai criaria as condições para vivermos no Maranhão. Aqui em Belém às escondidas permanecemos ainda em clandestinidade e passamos bons dias nas praias de Outeiro, visitamos Belém para conhecer a Praça. Novamente fomos nos deslocar em julho de 1975 para o Maranhão onde vivemos até a conquista da Anistia em 1979. Aí são outras tantas histórias.

Mas, de 1980 pra cá e nesse novo século, a história é no Pará. E, você tem muito que contar, não só aqui nas terras paraenses, mas em todo o território nacional. Pois ainda muito jovem iniciou-se no ativismo no movimento estudantil e integrado a União da Juventude Socialista correu o país fazendo lutas sociais. Participou ativamente como protagonista dos eventos políticos na conquista da redemocratização da sociedade brasileira. Tenho muito orgulho de você, meu filho – e sei, e espero que novas conquistas venham, muitas portas estão ainda a abrir na sua experiência de vida – e você a contribuir com a transformação da sociedade, abrindo portas para homens e mulheres que almejam dias melhores nesse nosso rico país.

Eneida Guimarães.