Comissão da ONU investiga crimes de guerra sob achaque de Israel
Benjamin Netanyahu está em êxtase. O primeiro-ministro de Israel considera uma possibilidade de “vitória” a demissão do chefe da comissão de inquérito do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre as denúncias de crimes de guerra na Palestina, o professor canadense William Schabas, nesta segunda-feira (3). Desde que indicado para o cargo, assim como o próprio Conselho, o jurista era acusado de tendenciosidade anti-Israel. Mas a missão segue seu trabalho.
Por Moara Crivelente*, para o Vermelho
Publicado 03/02/2015 17:56
Netanyahu não se conteve e disse que o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH), taxado antes por seu chanceler de “conselho dos direitos dos terroristas”, deveria arquivar de vez a investigação sobre os crimes de guerra cometidos tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Desde que anunciada a missão, em julho de 2014, durante a ofensiva de Israel que ceifou quase 2.200 vidas palestinas em Gaza, o governo israelense está numa espiral decadente e reage com agressividade.
Já o chanceler, Avigdor Lieberman, autor de frases representativas do sionismo mais fanático em Israel, disse que a nomeação de Schabas para a liderança da comissão foi como “indicar Caim para investigar quem matou Abel”, numa previsível referência religiosa. Até mesmo o “liberal” jornal estadunidense The New York Times deu a notícia referindo-se a Israel como “o Estado Judeu”, apesar das evidências sobre a intenção política, por trás da classificação, de 1) oficialmente continuar segregando árabes e qualquer não-judeu e 2) impor aos palestinos a condição inaceitável do reconhecimento de Israel como tal para perpetuar o impasse da solução do “conflito”.
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Na sexta-feira (30), a representação israelense na ONU escreveu ao presidente do CDH, o embaixador alemão Joachim Ruecker, para dizer que possuía evidências da tendenciosidade do jurista canadense. Segundo o diário israelense Haaretz, Israel tem documentos indicando que Schabas prestara um serviço de consultoria jurídica à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e que havia recebido US$ 1.300,00 por isso.
Schabas disse nunca ter escondido sua posição a respeito das políticas israelenses, assim como a própria ONU, que já emitiu dezenas de resoluções condenatórias através dos seus principais órgãos. A empreitada de deslegitimação do próprio CDH como um todo não é novidade. Resultou, por exemplo, no esquecimento quase completo do relatório que, em 2009, concluiu que Israel havia cometido crimes de guerra e “possíveis crimes contra a humanidade” em outra ofensiva contra Gaza, em dezembro de 2008 e janeiro de 2009, quando cerca de 1.400 palestinos foram massacrados. Uma busca pelas notícias relacionadas à investigação em 2009 (o relatório foi divulgado em setembro daquele ano) será perdida entre as matérias de acusação contra o juiz sul-africano e judeu Richard Goldstone que, tendo chefiado aquela missão, acabou excluído até mesmo de sua comunidade judaica.
Embora o relatório também acusasse o movimento de resistência e partido palestino Hamas de crimes de guerra, o documento foi completamente rechaçado por Israel e pelos Estados Unidos como produto de uma missão parcial e “anti-Israel”. Os esforços pelo fim da impunidade em ambos os casos parecem ser sempre amorais e ilegítimos. Naquela época, o ministro da Defesa Ehud Barak, possível réu no caso se este tivesse sido referido ao Tribunal Penal Internacional pelo Conselho de Segurança da ONU (uma possibilidade, se o Conselho não fosse manejado pelos vetos dos EUA, França e Reino Unido), taxou o relatório de “falso, distorcido e parcial”.
Já nesta terça (3), Netanyahu chegou a afirmar que o CDH provou ser um “órgão anti-Israel” porque em 2014 “recebeu mais resoluções contra Israel do que contra o Irã, a Síria e a Coreia do Norte juntos”. Relevemos a escolha de exemplos, por Netanyahu, de países contra os quais tem suas investidas agressivas determinadas. O premiê israelense faz a cínica manobra para passar por cima do fato de que 2014 não foi só o Ano Internacional de Solidariedade ao Povo Palestino (assim instituído por uma ONU de remorsos por sua incapacidade de cumprir um compromisso histórico com a autodeterminação palestina, já que politizada pelas potências imperialistas), como também o ano da terceira grande ofensiva israelense contra Gaza em cinco anos, em simultâneo com outra “operação militar” contra a Cisjordânia.
As práticas de uma ocupação sustentada sobre as violações de inúmeros artigos da quarta Convenção de Genebra sobre a proteção dos civis em tempos de guerra intensificaram-se: desde a expansão de colônias ilegais até as detenções arbitrárias (inclusive de crianças), repressão fatal de protestos e a demolição de lares e outras estruturas da Cisjordânia e Jerusalém Oriental como “medida punitiva” para “suspeitos” (e toda a sua família) de ações contra Israel, inclusive o mínimo tipo de resistência humanamente legítima. Esta política em específico destruiu os lares de 1.177 palestinos em 2014, de acordo com o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, uma média de nove edifícios por semana, causando a maior taxa de deslocamento forçado desde o início do monitoramento, em 2008.
O trabalho da comissão de inquérito segue. De acordo com seu portal de notícias, a juíza estadunidense Mary McGowan Davis substituirá Schabas numa equipe que já enfrenta barreiras, junto com o jurista senegalês Doudou Diène. A recusa israelense tem dificultado ou até impedido seu acesso a Gaza e à Cisjordânia, por exemplo, fazendo com que os testemunhos sejam em grande parte recebidos por correio, e-mail ou em reuniões na capital da Jordânia, Amã.
Schabas demitiu-se, de acordo com sua carta, para não permitir que as acusações contra ele prejudicassem os trabalhos da comissão de inquérito. Porém, Netenyahu, Lieberman e outros expoentes de um governo em convulsão e às vésperas das eleições antecipadas já anunciaram que investirão no total esgotamento do relatório a ser entregue em 24 de março. Os extremistas sionistas acomodaram-se na impunidade e, se não nos atentarmos, continuarão apostando tudo para que a situação se mantenha, assim como a ocupação da Palestina.
*Moara Crivelente é cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando a presidência do Conselho Mundial da Paz.