51 anos do golpe: Debate reuniu ex-presos políticos e ex-carcereiros

Um encontro de humanismo, emoção e renovação do compromisso com um Brasil melhor e com a plena emancipação do povo brasileiro. Assim foi o debate promovido na última terça-feira (31/03), em Fortaleza, pela Secretaria da Justiça do Ceará, com a inusitada e aplaudida proposta de reunir ex-presos políticos e agentes penitenciários que conviveram durante a ditadura no Instituto Penal Paulo Sarasate, onde um pavilhão era dedicado exclusivamente aos “subversivos”.

O debate, promovido por iniciativa do secretário de Justiça do Estado do Ceará, Hélio Leitão, que recepcionou os participantes na sede da Sejus, reuniu os militantes e ex-presos políticos Mário Albuquerque, Pedro Albuquerque, Benedito Bizerril (hoje integrante da direção estadual do PCdoB no Ceará) e Fabiani Cunha, o professor da Universidade Federal do Ceará e ex-vice-governador do Estado Francisco Pinheiro, o ex-agente penitenciário Antônio Rodrigues e o ainda agente penitenciário (atualmente denominado guarda de prisão) Antônio Tabosa.

No auditório, outros militantes que vivenciaram os horrores da ditadura e sentiram na própria pele as agruras de viver em um regime de exceção, com consequências perenes sobre a vida pessoal, profissional e familiar. Entre eles, Tânia Gurjão, irmã de Bergson Gurjão, militante comunista cearense assassinado pelos militares em 1972, no Araguaia, e que só em 2009, após seus restos mortais serem localizados, teve direito a um sepultamento digno, em Fortaleza. O mandato do deputado federal Chico Lopes (PCdoB-CE), que foi preso e torturado durante a ditadura, também esteve representado.

Em comum a todos, o repúdio às atrocidades, ao autoritarismo e às violações de direitos humanos cometidos pelos militares durante a ditadura e a total repulsa às recentes manifestações, em mídias sociais e protestos de rua, que chegaram a pedir “retorno da ditadura”, intervenção militar ou estrangeira.

Amizade e respeito

No debate, Mário Albuquerque, que ficou preso por nove anos, integrante da Associação 64-68, apressou-se em desfazer qualquer possível imagem de animosidade entre os ex-presos políticos e aqueles que foram seus “carceireiros” durante os anos 70.

“Não temos e nunca tivemos nada contra os agentes, pois para nós eles sempre foram representantes da classe popular, da classe trabalhadora. Muito pelo contrário; desenvolvemos uma relação de amizade e respeito com eles”, disse Mário, citando que a maioria dos diretores do IPPS, com exceção de um, Coronel Fortaleza, também agiu com respeito quanto aos “subversivos”.

Mário detalhou passagens da vida no cárcere, como a luta para driblar a proibição de diálogo com os agentes penitenciários e com os “presos comuns” e a batalha contra a péssima alimentação no IPPS, após a qual os presos conseguiram receber os gêneros alimentícios, para que eles mesmos cozinhassem.

“Sempre tive muita curiosidade em conversar com os chamados presos comuns. Eram pessoas que eram também presos políticos, presos de uma sociedade desigual, que lutamos para mudar”, testemunhou Mário, um dos últimos presos políticos a serem soltos no Ceará, após demora na emissão de alvará, mesmo meses depois de assinada a lei da Anistia.

De carceireiro a doutor

Antônio Rodrigues, atual diretor da Escola de Gestão Penitenciária, mantida pela Sejus, emocionou muitos presentes ao lembrar que, quando conciliava o emprego de agente penitenciário e a condição de estudante universitário, nos anos 70, abria os portões da cadeia para que as mães dos presos políticos pudessem visitá-los. Confessando ter desobedecido inúmeras vezes as ordem expressas recebidas para “não falar com os presos políticos”, o hoje doutor agradeceu a eles pelo que conquistou na vida, por sua forma de pensar, por ser quem hoje é.

“Nos plantões de 24 horas, aproveitava a noite para conversar com os presos políticos até de madrugada”, rememorou, citando que mudou radicalmente sua visão, em contraste com a noção que tinha em 1964, quando morava no Interior do Estado e recebia como se fossem positivas as poucas informações sobre a “revolução” que “salvava o Brasil do perigo do comunismo”.

Rodrigues revelou que foram intensas as reflexões ao conviver com a dialética no cotidiano, em dois mundos teoricamente tão diferentes, o da universidade e o do presídio, que se aproximavam pelas discussões sobre política, filosofia, direito, sociologia, caminhos para a transformação da sociedade. Antônio Rodrigues fez questão de convidar à mesa de debate o ex-preso político Fabiani Cunha, destacando-o como o mais inquieto, aquele que “inventava de tudo, criava passarinho, queria fazer um moto-contínuo, não parava quieto”.

Lembrar para não repetir

Advogado e militante, Benedito Bizerril dedicou sua fala à “responsabilidade” que sua geração possui, para seguir dando aos mais jovens um testemunho do que realmente foi a ditadura no Brasil, um contraponto necessário à onda neoconservadora que vem tentando se afirmar no País, nos últimos meses.

“Nesses tempos em que a gente se assusta com tanto desconhecimento da história, com gente que pede a volta da ditadura e até uma intervenção estrangeira no Brasil, é preciso cada vez mais contar essa história, alertar as pessoas, reforçar a importância da democracia”, destacou Bené, como é conhecido pelos colegas de PCdoB.

Ele reforçou o alerta feito pelo professor Francisco Pinheiro, que na fala inicial do debate traçou um contexto político, social e econômico do período em que o Brasil mergulhou em uma ditadura que se estenderia por 21 anos.

Pinheiro também defendeu as conquistas do governo Lula, como a inclusão social de quase 40 milhões de pessoas, a valorização do salário mínimo, o acesso à educação superior pelos filhos de trabalhadores. “Esses avanços foram construídos na política, no governo”, frisou.

Jornal Nacional proibido

Ainda em atuação como agente penitenciário, Antônio Tabosa, que está perto de se aposentar, também relembrou a convivência com os presos políticos que foram mantidos no IPPS. “Havia momentos difíceis, como quando tínhamos que ir no meio dos presos que estavam assistindo televisão à noite e desligar na hora do Jornal Nacional. A direção proibia assistir ao Jornal Nacional”, recordou, confirmando que a convivência, mesmo em condições tão duras, era marcada por amizade e respeito.

As lutas de hoje

Nas perguntas realizadas após as intervenções iniciais dos debatedores, questões que persistem como desafios da atualidade, como o combate à violência policial, a necessidade de aprofundar a democracia, a luta pela democratização da comunicação, o atraso em pagamentos de reparação financeira a ex-presos políticos, foram abordadas pelos participantes.

Todos parabenizaram a Secretaria da Justiça pela iniciativa em abrir o debate e reiteraram a urgência em combater toda e qualquer tentativa de apologia à ditadura e de quebra do estado democrático de direito. Em um marco simbólico e de agradecimento pela participação, os debatedores receberam como presente peças de artesanato confeccionadas por internos do sistema penitenciário cearense.

De Fortaleza,
Dalwton Moura

Foto: O Povo