Entenda a polêmica sobre o espectro ideológico da China

A estudante de doutorado da Universidade de Harvard, Jennifer Pan, e o estudante de graduação do MIT, Yiqing Xu, publicaram em conjunto, no dia 12 de abril de 2015, um artigo intitulado “China’s Ideological Spectrum” (Espectro Ideológico da China). Este, rapidamente, incitou calorosos debates e atraiu bastante a atenção da academia e dos observadores chineses.

Por Gaio Doria*

Partido Comunista da China

O portal do Wall Street Journal, por exemplo – famoso pelo seu engajamento no ataque ao Partido Comunista da China – publicou uma análise onde sustenta que pesquisadores estadunidenses acharam uma versão análoga do mapa “Democratas versus Republicanos” para o país asiático.

O estudo foi baseado em dados do Chinese Political Compass, site mantido e idealizado por indivíduos associados à Universidade de Pequim. Os dados são referentes ao ano de 2014, onde supostamente 171.830 pessoas responderam anonimamente o questionário do site.

Em suma, o artigo sustenta que as regiões mais prósperas tendem a ser ideologicamente mais liberais, enquanto áreas rurais mais pobres tenderiam a ser mais conservadoras. No nível individual, os indivíduos mais ricos e bem educados tenderiam a expressar menos conservadorismo.

Aqui nos cabe uma observação: os autores redefinem a ideia de conservador e liberal na China. Eles argumentam que devido ao passado imperial, autocrático, confuciano e comunista, onde essas ideologias eram usadas para justificar o poder dominante, os liberais e conservadores são posicionados em uma escala diferente de esquerda e direita das “democracias consolidadas”. Por exemplo, uma pessoa que defende os direitos dos homossexuais nos EUA é considerada liberal na esquerda enquanto uma pessoa que defende os mesmos direitos na China seria considerada liberal na direita. Outro exemplo, uma pessoa que defenda políticas econômicas laissez-faire nos EUA é considerada conservadora na direita, enquanto uma pessoa que defenda as mesmas políticas na China seria considerada liberal na direita.

O conceito de ideologia proposto pelos autores é extremamente confuso. Partindo de um número considerável de fontes, porém muito mal explicadas, eles definem ideologia como representações organizadas e relevantes de políticas públicas ou das opiniões da elite ou das massas.

Traduzindo: os autores criaram uma tabelinha onde através da análise histórica da China dividiram ideias entre conservadoras e liberais. Sendo conservadoras as ideias geralmente associadas à esquerda e liberais as ideias geralmente associadas à direita. Apenas mudam os parâmetros para servirem seus interesses.

Curioso é que as ideias tidas como conservadoras são as de esquerda, ou seja, os autores já partem de uma construção ideológica – ocidental e capitalista – da esquerda chinesa. Apesar dos malabarismos metodológicos e da conclusão “cientifica e imparcial” de que a “ideologia” na China é unidimensional, isto é, conservadorismo político anda lado a lado com conservadorismo social e econômico enquanto liberalismo anda lado a lado com o liberalismo social e econômico. Ao leitor atento, é evidente que qualquer mudança sugerida pelos autores deve sempre ser a mudança na direção dos valores ocidentais capitalistas.

A conclusão não poderia ser mais óbvia – seja por inocência ou intencionalmente – os autores terminam por enquadrar implicitamente a experiência estadunidense como superior ao sustentar a clássica hipótese de que a economia de mercado necessariamente leva à democracia liberal. Coincidentemente, os resultados também encontram uma perfeita contrapartida geográfica, onde as áreas costeiras seriam mais liberais, enquanto as do interior mais conservadoras.

O estudo é sem sombra de dúvidas muito bem construído metodologicamente em termos quantitativos mas, como apontado, peca na construção qualitativa por partir de pressupostos ideológicos sem assumi-los explicitamente.

O portal do jornal chinês Global Times, em seu editorial, elaborou uma resposta contundente ao afirmar que o artigo é baseado em dados de respondentes anônimos cujo número é inexpressivo para acessar a verdadeira realidade da China. Ademais, esse tipo de dados está muito aquém dos padrões acadêmicos de Harvard ou do MIT o que nos leva a suspeitar que esta publicação foi especialmente talhada para fins políticos.

Curioso é que os próprios autores no inicio do artigo admitem que os dados são problemáticos, mas defendem que a análise é possível, depois de claro, uns efeitos especiais estatísticos.

E precisaria mesmo de muitos efeitos especiais para alegar que 171.830 pessoas possam ser consideradas uma amostra representativa de um país com 1.3 bilhões de pessoas. Isto para não mencionar o fato de que os questionários são respondidos anonimamente, pois qualquer um, em qualquer lugar e quantas vezes quiser, pode responder as perguntas.

A grande questão, como demonstra a experiência chinesa, é que não existe uma relação sólida entre desenvolvimento econômico e ideologia. O estrondoso sucesso econômico, liderado pelo Partido Comunista da China, demonstra claramente que o sistema chinês não discrimina áreas.

Apesar das políticas de Reforma e Abertura terem sido inicialmente introduzidas na área costeira, o governo chinês tem se empenhado diariamente para expandi-la até os mais ermos cantos do país. Esta estratégia tem tido resultados tangíveis, vide os altos índices de desenvolvimento econômico nas provinciais interioranas.

Todo este esforço é parte integrante da construção do socialismo com características chinesas, cujo objetivo nunca será o abandono do caminho socialista. A China já deixou claro que a reforma econômica não se estenderá a uma reforma política cujo resultado seja uma troca de regime.

Infelizmente, essas pesquisadas enviesadas são propositalmente construídas e difundidas entre o público através da “imparcialidade cientifica” de prestigiosas instituições acadêmicas. Elas acabam replicadas pelos tradicionais veículos de mídia e essas visões adentram no senso comum sem que percebamos. Desta forma esperamos ter feito as devidas ressalvas para que o público brasileiro tenha acesso a uma visão mais próxima da realidade da China.

*Doutorando pela Universidade do Povo da China (Renmin University of China)