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As reflexões do cotidiano de Priscila Merizzio

Priscila Merizzio é poeta, formada em Comunicação Social, mas acima de tudo poeta. Trata do cotidiano com sagacidade e beleza ao mesmo tempo. Curitibana, deixa evidente o “cinza” e a “frieza” de sua terra natal em suas poesias, apesar de terem cor, texturas e diversas temperaturas.

Priscila Merizzio - Arquivo pessoal

Os poemas divulgados em Prosa, Poesia & Arte são inéditos, serão publicados no livro de Priscila que está por vir. A poeta colabora esporadicamente com a revista de poesia e debates Zunái; tem poemas e prosas publicados na Sibila – Poesia e Crítica Literária, Eutomia – Revista de Literatura e Linguística, entre outras.

Teve também seus poemas publicados em algumas antologias, entre elas a Fantasma Civil, da Bienal Internacional de Curitiba de 2013 e 101 poetas paranaenses, da Biblioteca Pública do Paraná, em 2014. É autora de Minimoabismo, livro de estreia publicado em 2014.

Leia os poemas na íntegra: 

colírio da Argélia
ressona um leão
lambendo as esporas
de meus olhos que tilintam
fugas
e como um bicho
geográfico alinhava meu monte
de Vênus às suas patas
encardidas, puxando
um títere no clitóris

eco de rugido
nos canos da mansão
vaginal, roçando na glande
cor de antúrio

caninos esfumados de vinho
arroxeando minhas
saboneteiras

me enrolo em pele
de carneiro no táxi
saio do flat
ao abraço gélido
da vodca: meu bafo
contra o espelho cantando
Riders on the Storm

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desforra

meu deflorador casou-se por orgulho
nas crises de ciúme
sua esposa me tortura
em xícaras de agorafobia
como são longos os sofás
defumados por más lembranças
fedendo a urina negra de amigos infiéis
todos perderam a inteligência nas enchentes
de absinto podre

o deflorador persiste em bordéis
amaciado pela figura de pai
às meninas louras que poderiam ter sido
minhas filhas

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premonição

você alvejou com turmalinas o carro
do tio pedófilo
tomávamos café com leite materno
da filha que bordávamos em meu ventre
ela teria olhos azuis, crina ondulada
degolaria bonecas imitando seus
desenhos de homens amputados
e vilarejos incendiados por diabos alegres
as loucuras de meus parentes
o gosto por bebida e jogo de cartas
limparia com obsessão o berço
nossa cama, a despensa de comida
amaria a lua cheia e sairia com
homens mais velhos
antes de ela nascer mais quente do que o sol
o primo banhava-se às cinco da manhã
no chuveiro gelado
dormíamos como irmãos
o sexo era sagrado
beber e chapar
era sagrado
a loucura perambulava distante
como uma mendiga disfarçada
de cigana
lendo em nossas mãos
pontes derribadas no
Rio Jordão

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fugidio

domingo faz florescer
a embolia cardíaca de seu sexo
injetando morte em meus rins
está no pó o tétano de suas
manchas de nascença escorrendo
na água do banho, nublando o ralo com
sombras marrons
num vitiligo aquático meus pés
absorvem-nas pisando o chão do chuveiro
esfrego à carne viva seu corpo branco que tantas
vezes perfurou meu quadril bugre
as manchas de nascença dançam sobre
minhas canelas infestadas de cicatrizes
o tétano influi em meu corpo desabando
como um boi morrendo de febre
leio Eclesiastes e estoco as flechas
nas heras dos archotes guardando
o fogo de seus olhos
leio Eclesiastes e sucumbo às suas
carícias

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sonâmbula

“pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa”
(Carlos Pena Filho)
caminho dentro de casa
flanando como um espírito
não sei se estou viva
ou se já morri
arrumo minha cama, dobro as peças
delicadas
alimento os bichos e falo sozinha
no chuveiro, escovo
meus cabelos até os cachos virarem
algas-marinhas castanhas
fujo dos homens tentando
me salvar da torre pastilhada
que animal eu serei
fora do cativeiro?

às vezes penso que Curitiba
é criação da minha mente
e esqueço que sou aquela
figura onipresente caminhando
nas ruas
alguns estranhos têm
uma pedra pulsando no peito
partindo os ossos do tórax
outros têm coração feito de
manteiga, derretendo-se nas
bracatingas

estou louca de verdade?
ou Deus já está olhando para
minha morada
Sua mão florida já está
me tirando da orfandade,
dos escombros, dos anos de vício?
dos pensamentos obscuros
desnecessários?

talvez me concentre demais
nos gestos irrisórios, nas vozes ecoando
nos salões e cafés
e calcule todos os movimentos
meus e dos outros, em todos os
ângulos de uma câmera
imaginária

a solidão é uma erva-daninha
crispando minha pele
vou arrancá-la como pelos
e engolir os sóis da alvorada
iluminar meu fígado
como um feto desesperado
para nascer em berço
de ouro