Dalmo Dallari: Constituição escandalosamente agredida

O renomado jurista Dalmo Dallari, em artigo publicado no Jornal do Brasil, classifica a votação que aprovou o financiamento empresarial de campanha eleitorais como uma violação daqueles que desprezam o direito e a ética e "agridem escandalosamente a Constituição", pondo em risco a normalidade constitucional e a democracia. 

Jurista Dalmo de Abreu Dallari

Leia a integra do artigo abaixo:

"Quando integrantes do Parlamento Nacional, desprezando o Direito, a Ética e seu dever fundamental de dar predominância aos interesses do povo que teoricamente representam, quando mandatários desse nível e com essa responsabilidade agridem escandalosamente a Constituição, estão em risco a normalidade constitucional, a preservação do regime democrático, a autoridade das instituições jurídicas e, em síntese, todos os valores fundamentais do povo. Isso está ocorrendo agora no Brasil e torna necessária e urgente uma reação eficiente de todos os que acreditam no Direito, na Justiça e na Democracia e que possam, ou mesmo, devam coibir a continuidade da agressão.

É tão evidente a inconstitucionalidade que não é necessário ter formação jurídica para reconhecê-la, bastando uma síntese dos fatos e a leitura do claríssimo texto constitucional. No dia 26 de maio o povo brasileiro comemorou a rejeição, na Câmara de Deputados, de Proposta de Emenda Constitucional que pretendia instituir o financiamento empresarial a partidos e candidatos. Entretanto, com incrível audácia, no dia seguinte o Presidente da Câmara submeteu novamente a votação a Proposta rejeitada e desta vez, por motivos obviamente imorais que podem ser imaginados, a proposta foi aprovada, devendo, agora, passar por várias outras votações.

Para se ter, com absoluta clareza, o absurdo da revotação ocorrida no dia 27, basta reproduzir aqui o que dispõe, expressa e claramente, o artigo 60 da Constituição, que trata das propostas de emenda à Constituição, em seu parágrafo 5º: “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.Quanto ao mérito da proposta, regularmente rejeitada e cinicamente adotada no dia seguinte, não é necessário qualquer esforço para que se perceba que ela pretende introduzir no sistema eleitoral brasileiro uma prática antidemocrática e absolutamente contrária aos interesses do povo brasileiro. Com efeito, por meio de tal proposta o que se pretende é a legalização de uma prática imoral e injusta. O poder econômico das empresas substituirá a vontade do povo, estando aberto o caminho para a compra de apoios e a mais cínica corrupção, com evidente prejuízo dos interesses do povo brasileiro. Na realidade, não haverá mais no Brasil um sistema eleitoral democrático e, em decorrência, os órgãos representativos estabelecidos na Constituição serão meras fachadas, sem compromisso com a democracia, o Direito, a Justiça e a moralidade pública.

Todos os que puderem, de qualquer forma, reagir contra essa imoralidade inconstitucional deverão fazê-lo, com toda a veemência. Do ponto de vista jurídico, cabe especial responsabilidade ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, ao qual, nos termos expressos da Constituição, em seu artigo 102, “compete precipuamente, a guarda da Constituição”. Conscientes da supremacia da Constituição na ordem jurídica democrática e confiantes na firmeza, na independência e no espírito público dos eminentes membros da Corte Suprema, 63 parlamentares, de diversos partidos, já impetraram Mandado de Segurança perante o Supremo Tribunal Federal, para que, em defesa da Constituição, seja imediatamente suspenso o procedimento inconstitucional, antidemocrático e imoral que acaba de ter início na Câmara dos Deputados, como acima foi exposto. É preciso sustar imediatamente essa ofensiva, para que se possa continuar afirmando a autenticidade do artigo 1º da Constituição, que define o Brasil como “Estado Democrático de Direito”.