Relatório da ONU sobre Gaza: O fim da impunidade israelense?

As reações da liderança israelense ao relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre a última guerra contra Gaza eram previsíveis: a iniciativa foi taxada pelo premiê Benjamin Netanyahu de “obsessão singular” por Israel. Já a constatação da juíza Mary McGowan Davis, chefe da Comissão de Inquérito, também era esperada: “a extensão da devastação e o sofrimento humano em Gaza foram inéditos e impactarão as gerações futuras.”

Por Moara Crivelente*, para o Portal Vermelho

Shujayeh Gaza - AP

O “Relatório da Comissão Independente de Inquérito das Nações Unidas sobre o Conflito de Gaza em 2014” foi publicado na segunda-feira (22) já precedido por ataques da liderança israelense. Quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU deliberou sobre o estabelecimento da comissão – em julho de 2014, em meio à “Operação Margem Protetora” contra Gaza – o órgão foi atacado pelo então ministro das Relações Exteriores de Israel, Avigdor Lieberman, para quem aquele deveria ser denominado “Conselho dos Direitos dos Terroristas”.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu disse na segunda que os esforços do Conselho para responsabilizar a liderança por sucessivas ofensivas e pela prática diária da ocupação israelense – assentada nas violações multidimensionais dos direitos humanos dos palestinos – revelam uma “obsessão singular por Israel”. A comissão foi estabelecida pela quase totalidade dos votos, à exceção apenas dos Estados Unidos, que classificou a iniciativa de “improdutiva”; e na comissão, a liderança do jurista canadense William Schabas foi substituída devido à perseguição que sofreu. Os trabalhos foram então conduzidos pela dupla de juristas Mary McGowan Davis (dos EUA) e Doudou Diène (do Senegal).

Essa foi a terceira grande ofensiva militar israelense contra Gaza em cinco anos. Como já fartamente documentado, as hostilidades de 2014 foram marcadas por um aumento considerável do poder de fogo, com mais de seis mil ataques aéreos lançados por Israel, além de quase 50 mil disparos de tanques e morteiros, de acordo com a comissão de inquérito. O número de vítimas fatais civis, afirma a comissão, foi de 1.462 pessoas, sendo 1/3 delas crianças. O total de palestinos mortos foi de mais de 2.200 pessoas; ou seja, mais de 66% eram civis, segundo as estimativas do relatório. Contra o território israelense, os grupos armados de Gaza lançaram 4.881 foguetes e 1.753 morteiros, matando seis civis nas cidades próximas à fronteira com o território densamente habitado e sitiado desde 2007.

Impunidade ou responsabilização?

O relatório incluiu testemunhos de difícil coleta, já que os comissários foram impedidos de ir a Gaza devido à falta de colaboração de Israel. O texto também aborda a situação na Cisjordânia e Jerusalém Leste, onde outra operação militar, a “Guardião Fraterno”, foi lançada em 12 de junho, após o desaparecimento de três jovens colonos israelenses, depois encontrados mortos. Naquele contexto, 27 palestinos foram mortos e 3.020 foram feridos entre junho e agosto, com um aumento expressivo das detenções, frequentemente arbitrárias. Atualmente, há cerca de seis mil palestinos presos em cárceres israelenses.

De acordo com o relatório, ao menos 142 famílias perderam três ou mais membros num ataque contra um prédio residencial, quando 742 pessoas morreram; o massacre é atribuído pelo inquérito à falha israelense em “revisar suas práticas de ataques aéreos”, sobretudo diante da possibilidade de vitimar civis. A ação é uma violação da quarta Convenção de Genebra sobre a Proteção de Civis em tempos de Guerra, de 1949, que define os crimes de guerra, o genocídio e os crimes contra a humanidade. “Todos nós morremos naquele dia, mesmo os que sobrevivemos”, disse um membro da família Al-Najjar, de Khan Younis, que perdeu 19 parentes, inclusive todos os seus filhos, em 26 de julho. 

É relevante notar que, ao contrário do Relatório Goldstone – publicado em 2009, após a “operação Chumbo Fundido” contra Gaza – o texto desta semana não é uma clara acusação contra Israel e os grupos armados palestinos, mas abre as portas para a continuidade do processo, concluindo que as autoridades israelenses não cumprem o disposto no direito internacional sobre a investigação imparcial.

Assim, o caminho está traçado no empenho para que o Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual o Estado da Palestina é membro desde abril, dê prosseguimento para, finalmente, responsabilizar a liderança israelense. Um detalhe importante: a adesão palestina ao TPI foi respaldada pelo Hamas, que governa a Faixa de Gaza, ainda que haja a possibilidade de o movimento também ser indiciado.

Negar responsabilidade através do direito internacional

A resposta israelense às acusações sobre sua conduta na ofensiva varia entre alegações de que medidas foram tomadas para evitar o sofrimento civil – inclusive o envio de mensagens sobre o iminente bombardeio de lares, ou a tática denominada “bater no telhado”, com o uso de foguetes para fazer os habitantes deixarem suas casas antes de bombardeios – e a classificação generalizada das vítimas como “terroristas” ou “escudos humanos”, quando civis. Toda a narrativa sobre as vítimas civis é construída pelos líderes israelenses em torno desta alegação, a partir da instrumentalização do direito internacional para defender suas ações.

Já nesta quarta-feira (24), em declarações ao jornal israelense Haaretz, o comandante do Exército disse que “o excesso de cuidado colocou soldados israelenses em risco” e que, “sem remorso”, só poderia ser acusado de ter sido “humano demais”. Um relatório da organização israelense de veteranos Breaking the Silence (“Quebrando o Silêncio”), porém, deu outra perspectiva, com a denúncia de ordens brutais e da prática de disparos indiscriminados contra residências e até mesmo pessoas.

A investigação israelense sobre um ataque aéreo matou quatro crianças (Ismail, de nove anos, Ahed e Zakariya, de 10, e Mohammad, de 11, todos da família Bakir) que jogavam futebol numa praia, em 16 de julho, considerou a ação “legítima”. O princípio de complementaridade das investigações internacionais previsto no Estatuto de Roma (constitutivo do TPI) supõe a prioridade dos inquéritos nacionais sobre as práticas durante a guerra. As insuficientes investigações conduzidas pelo Exército de Israel comprovam a intenção de manutenção do principal hábito da ocupação israelense: a impunidade na escalada da brutalidade contra os palestinos.

O teatro montado para encenar uma disposição de Israel para averiguar a condução dos ataques foi exposto. De acordo com o relatório da ONU, o Estado de Israel falha em não aderir aos “padrões internacionais” e deve fazer mudanças consideráveis para cumprir seu dever de investigar, julgar e responsabilizar os que perpetraram violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos.

O texto já sofre represálias similares às sofridas pelo Relatório Goldstone – que concluíra que “crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade foram perpetrados”. Após um longo debate e o acosso contra o juiz Richard Goldstone, líder da comissão, seu relatório foi arquivado. Com a adesão da Palestina ao TPI e a intenção palestina de entrega de mais documentos para a demanda contra Israel nesta quinta-feira (25) – a chance é de que o novo documento seja mais um instrumento na empreitada pela responsabilização da liderança de Israel; a impunidade ainda é central para a continuidade da ocupação e do massacre dos palestinos.