A mídia que mata 

Em 1984 o jornalista José Wilson escreveu um artigo, publicado na revista Lua Nova, que tinha o seguinte trecho: “As manhãs do rádio paulista são banhadas de sangue, terror e ódio”. O título do artigo era “O crime pelo rádio” e vale a pena ler alguns trechos. 

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“Se você ligasse o rádio, numa manhã de abril deste ano, na Rádio Globo de São Paulo, a segunda emissora mais potente do Estado, capaz de atingir até o interior da Amazônia, iria ouvir, às 9 horas, o Gil Gomes descrevendo como o sangue corria de um buraco de bala na cabeça de um homem que andava cambaleando pelas ruas, após ser assaltado por um assassino frio”.

“Na mesma hora do programa descrito no começo, virando um pouco o botão do rádio, eis Wagner Montes, na Rádio Record, ganhando fama no mesmo estilo. Policiais contam como um tarado, morador em um barraco da zona Leste, raptou uma mocinha de 15 anos e a manteve presa em casa por quase um ano. Os policiais até descrevem os atos sexuais que o homem praticava com a menina. Aí vem a mãe da moça e também fala no programa e, com todo esse clima de emoção, Wagner Montes aproveita para pedir aos policiais que espanquem o doente mental. E sugere que o melhor remédio é matar gente assim.”

“E às mesmas 9 horas, da mesma manhã de abril, a Rádio Capital de São Paulo apresenta a sua grande conquista: tomado da Rádio Globo depois de uma disputa na Justiça por causa do contrato, ali está Afanásio Jazadji, contando principalmente pequenos crimes que ocorrem nas favelas, assaltos de bandidos ‘pés-de-chinelo’, contra os quais exige torturas e morte. O ponto alto é quando Afanásio aproveita a gravação de uma entrevista feita por um repórter com o criminoso ou suspeito e finge conversar com ele, chamando-o de patife, canalha, ameaçando-o”.

José Wilson dizia que para este tipo de programa a polícia tinha sempre razão em matar, e constatava que o número de mortos pela PM aumentava de ano a ano. “Em 1982, a polícia matou 286 pessoas (era o tempo da administração de Maluf); em 83, o primeiro ano de Montoro, a polícia fez 328 mortos”.

Panorama macabro

Dados atuais mostram que em 2014 a PM de São Paulo fez 694 vítimas fatais. Entre 2009 e 2013 foram 11.197 pessoas mortas por agentes públicos em todo o país. E qual o papel da mídia nisso tudo? A crônica policial é um gênero antigo, inclusive no rádio. O exemplo mais longevo talvez seja o do programa carioca Patrulha da Cidade, da Rádio Tupi, no ar de forma interrupta e sempre com grande audiência há 55 anos. Mas o Patrulha da Cidade aborda o tema da violência policial temperado com bom humor. Pode-se até discutir se é um humor de bom ou mau gosto, mas o Patrulha tinha (e ao que parece ainda tem) essa mediação.

O ódio reina sozinho

Depois de um tempo, o que passa a vigorar na crônica policial do rádio e mais tarde da TV é a desenfreada exploração do medo e do ódio puro e simples e o humor passa a ser totalmente acessório. Alguns antigos apresentadores de rádio, como Wagner Montes, mudaram-se para a TV, e o que era ruim, ficou pior. Com uma expressão transtornada, Wagner Montes brada fixando um olhar arregalado para as Câmaras: “Eu, Wagner Montes, torço para a polícia largar o aço e colocar eles (os supostos bandidos) na vala”, e completa, com um esgar cada vez mais alucinado: “Bandido pulga de bunda, você é um merda, bandido pulga de bunda, vagabundo, safado, idiota!”. A fama da TV, ancorada por bordões como “escraaaaacha!” e “larga o aço minha poliçada”, levou Wagner Montes ao parlamento estadual e seu nome chegou a ser cogitado para a prefeitura do Rio de Janeiro. Nas pesquisas pré-eleitorais foi apontado como um dos favoritos, mas não chegou a concorrer.

Mídia: “Eficiente meio de desagregação moral”

Em entrevista ao Jornal GGN, em fevereiro de 2014, o criminalista Antonio Carlos Mariz, dizia: "A televisão, como mais eficiente sistema de aculturamento, chegando onde a escola não chega, está prestando um desserviço à sociedade brasileira, tornou-se um eficiente meio de desagregação moral. Não porque mostra beijos de dois homossexuais, mas porque mostra que os problemas da vida são resolvidos à bala e o valor argentário é o mais relevante (…) a TV faz questão de ir além da lei e ela mesmo aplica penas cruéis, perpétuas, porque o mero suspeito é exposto à execração pública, antes mesmo de estar sendo investigado". O cineasta Michel Moore, no documentário “Tiros em Columbine” (1982), em determinado momento do filme, intrigado pela disparidade no número de mortes anuais causadas por armas de fogo nos EUA em comparação com outros países desenvolvidos (Alemanha: 381, França: 255, Canadá: 165, Grã-Bretanha: 68, Austrália: 65, Japão: 39, EUA: 11.127), investiga o papel da mídia na promoção da violência. Vale a pena ver os 27 minutos do vídeo que tratam mais especificamente do tema (abaixo, com legendas em português de Portugal).

Nos EUA como no Brasil, nos programas policiais 100% das imagens de “bandidos” sendo presos são de pessoas negras e/ou pobres. As constantes mensagens, abertas ou subliminares, que em sua essência transmitem a ideia de que “bandido bom é bandido morto” ou “não morreu à toa” evidentemente servem de absolvição preventiva ao abuso policial. Afinal, se morreu, era “vagabundo”, pois ninguém “morre à toa”, e os policiais são os heróis da população. O intrigante é que a população em peso reconhece a polícia como despreparada e muitas vezes corrupta, mas ao mesmo tempo também em peso adere ao discurso midiático do “bandido bom é bandido morto”, aparentemente abstraindo o fato de que se a polícia é, em parte ou em sua maioria, corrupta e, portanto, bandida, quem morre pelas mãos dessa polícia muitas vezes pode ser o mocinho da história. O dia 06 de julho de 2008 era um domingo. No bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, “a poliçada largou o aço”. Dois PMs dispararam 15 tiros contra um carro suspeito. No veículo estava Alessandra Amorim Soares, que voltava de uma festa de aniversário com seus dois filhos. Um, de três anos, atingido na cabeça, morreu. O outro, um bebê de nove meses, escapou ileso. Alessandra também escapou, embora tenha sido atingida por uma bala.

Mídia hegemônica com as mãos sujas de sangue

O drama causou comoção, uma comoção mais do que justa, mas também muito seletiva, pois “erros” como esses acontecem TODO DIA em favelas e comunidades populares do Brasil, vitimando inocentes e por diversas vezes, crianças e poucos destes casos viram manchete e menos ainda causam grande alarde. Enquanto isso, na última terça-feira (23), duas emissoras transmitiram ao vivo um policial, após uma perseguição, atirar em dois jovens de 16 e 17 anos que já estavam caídos. O apresentador do programa Cidade Alerta, da Record, Marcelo Rezende, vibrou, elogiando o policial: “Fez muito bem! ”. Marcelo Rezende, Datena, Wagner Montes e outros do gênero com certeza não desejam o assassinato de inocentes. Não é esta a questão. A questão é que a mídia – com a ajuda destes personagens grotescos que coloca a seu serviço – opta pela barbárie buscando atingir dois objetivos que se alimentam mutuamente: aumentar a audiência e ao mesmo tempo a alienação cultural e política. Isto tem cunho ideológico (a alienação permite mais facilmente manipular a massa) e comercial (audiência maior significa mais lucro). Portanto, a estratégia de instrumentalizar a favor de seus interesses a violência urbana – que atinge cruelmente em primeiro lugar o pobre – faz com que a mídia não precise puxar o gatilho para ter suas mãos constantemente sujas de sangue.

Brasil é o 4º país com mais capacidade de atrair investimentos no mundo

Você não encontrará esta notícia com destaque em nenhuma manchete dos jornalões da mídia hegemônica. A Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) realizou uma pesquisa com mais de 1000 multinacionais em 89 países e constatou que o Brasil, na opinião dos executivos ouvidos, é o 4º país com mais potencial para atrair Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) entre 2015 e 2017. O Brasil subiu uma posição em relação à pesquisa feita em 2014 e está melhor colocado do que países como Reino Unido (6º), Alemanha (7º), Austrália (10º), Canadá (11º), França (12º) e Japão (13º). Dos quatro primeiros lugares, três são ocupados por países do Brics, China (1º), Índia (3º) e Brasil (4º). A Rússia, entre outras coisas devido às sanções econômicas que sofre, está na 16ª colocação. Os Estados Unidos aparecem na 2ª posição.

O que seria manchete

Se no ranking de 2015 o Brasil tivesse caído do 5º lugar de 2014 para, digamos, o 8º, isso seria manchete em todos os veículos da mídia hegemônica. A Globonews promoveria debates intermináveis em torno desta informação, e os famosos comentaristas amestrados abordariam a questão com a costumeira empáfia sorridente. Mas como a notícia não serve aos propósitos de caracterizar a atual crise como irreversível e apocalíptica, a notícia fica relegada aos cadernos econômicos, sem destaque mesmo nestes, e com chamadas canalhas como o do jornal O Globo que informa (na página 25), na edição desta quinta-feira (25)  “Brasil sobe em ranking de investimento estrangeiro” e logo em baixo: “porque média mundial caiu 16,3%”.