A crítica romântica de Charles Dickens ao capitalismo
Embora fosse completamente alheio às ideias socialistas, Charles Dickens era um dos autores favoritos de Marx. Seu romance Tempos difíceis, publicado em 1854, contém uma expressão excepcionalmente articulada da crítica romântica à sociedade industrial.
Por Michael Löwy e Robert Sayre*, no Blog da Boitempo
Publicado 03/07/2015 14:06

Não faz uma homenagem tão explícita às formas pré-capitalistas, geralmente medievais, quanto a maioria dos românticos ingleses – como Burke, Coleridge, Cobbett, Walter Scott, Carlyle (a quem Tempos difíceis é dedicado), Ruskin e William Morris -, mas a referência aos valores morais do passado é um componente essencial da atmosfera criada por ele.
Por um paradoxo que é apenas aparente, o refúgio desses valores aparece na forma de um circo, uma comunidade um tanto arcaica, mas autenticamente humana – na qual as pessoas ainda têm um “bom coração” e uma “atitude muito natural” – que se situa fora, e em franca oposição, à sociedade burguesa “normal”.
Em Tempos difíceis, o espírito frio e quantificador da era industrial é magnificamente personificado por um ideólogo utilitarista e membro do Parlamento, Mister Thomas Gradgrind (senhor “Triturador-sob-medida” é a tradução aproximada do nome…). Trata-se de um homem que tem “uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso” e está sempre “pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato”. Para Gradgrind, tudo no universo é “mera questão de números, um caso de simples aritmética”, e ele administra com mão de ferro a educação das crianças, segundo o princípio salutar de que “aquilo que não se podia expressar em números, ou demonstrar que era comprável no mercado mais barato e vendável no mais caro, não existia, e não deveria existir”. A filosofia de Gradgrind – a amarga e dura doutrina da economia política, do utilitarismo estrito e do laisser-faire clássico – era que:
Mas Tempos difíceis não trata apenas da trituração da alma: o romance ilustra também como a modernidade expulsou da vida material dos indivíduos qualidades como beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina fastidiosa, cansativa e uniforme. A cidade industrial moderna, “Coketown”, é descrita por Dickens como “uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se desenrolavam de todo”.
O espaço e o tempo parecem ter perdido toda diversidade qualitativa e toda variedade cultural, tornando-se uma estrutura única, contínua, moldada pela atividade ininterrupta das máquinas.
Notas
1. Charles Dickens, Tempos difíceis, (trad. José Baltazar Pereira Júnior, São Paulo, Boitempo, 2014), Mais tarde, eleito para o Parlamento, Thomas Gradgrind torna-se “um dos respeitados membros dos pesos e medidas, um dos representantes da tabuada, um dos honoráveis cavalheiros surdos, um dos honoráveis cavalheiros mudos, um dos honoráveis cavalheiros cegos, um dos honoráveis cavalheiros mancos, um dos honoráveis cavalheiros mortos, a qualquer outra consideração” (ibidem, p. 111).
2. Ibidem, p. 187, 244 e 119
3. Ibidem, p. 37
4. Ibidem, p. 81, 188 e 299. O herói do romance, o operário Stephen Blackpool, cai em um desses poços – o “velho Poço do Inferno” e morre.
5. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França (trad. Renato de Assumpção Farias, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura, Brasília, UnB, 1997), p. 100.