Vilanova Artigas, o arquiteto comunista

Sempre tendo a arquitetura como eixo, João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) foi um pensador e ativista da educação, da política e do urbanismo. Tentar dar conta de todas as facetas sobrepostas do arquiteto é um dos desafios das atividades marcadas para este ano de seu centenário.

Vilanova Artigas - Reprodução

No âmbito acadêmico, estudiosos de Artigas discutem a obra do arquiteto com vários métodos, criticamente, e algumas vezes divergem entre si, mas todos os entrevistados por esta reportagem concordam num ponto: a urgência de recuperar uma arquitetura relacionada diretamente às questões culturais e urbanas, como a praticada por ele. “Esse talvez seja o principal legado de Artigas: pensar a cidade em suas implicações sociais e políticas, e não apenas como um objeto a ser desenhado”, diz Leandro Medrano, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e autor, com Luiz Recamán, do livro Vilanova Artigas – Habitação e cidade na modernização brasileira (Editora da Unicamp), que pretende buscar na obra do arquiteto entre as décadas de 1940 e 1970 sua ideia de cidade possível.

Nascido no Paraná, Artigas é considerado o expoente inicial da chamada escola paulista de arquitetura, classificação não totalmente unânime entre os especialistas em sua obra. De qualquer forma, não se discute que as mudanças da cidade de São Paulo, de núcleo urbano médio, até provinciano, a metrópole industrial, tiveram papel fundamental em suas concepções de arquitetura e urbanismo. Entre as obras mais emblemáticas estão marcos como o estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi), o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, conhecido como Parque Cecap, em Guarulhos, o edifício residencial Louveira, no bairro de Higienópolis, a rodoviária de Jaú (SP) e o prédio da FAU-USP, na Cidade Universitária, considerado sua obra-prima.

Membro do Partido Comunista do Brasil (PCB) desde 1945 [Brasileiro após 1960], Artigas trazia da militância a preocupação prioritária com o coletivo. Numa aula registrada em filme, ele definiu a função do arquiteto como “intermediário entre algumas vontades sociais e o seu conhecimento do valor cultural da arquitetura”. Além disso, foi um “arquiteto da prática”, nas palavras de Felipe Contier, doutorando em História da Arquitetura pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP de São Carlos, cuja tese é sobre o prédio da FAU. A expressão não se refere apenas ao Artigas militante no ensino de arquitetura e na formalização de instituições ligadas à profissão, mas também ao fato de que ele se formou em engenharia pela Escola Politécnica da USP, quando ainda não havia a FAU, que posteriormente ajudaria a fundar.

Embora Artigas e Oscar Niemeyer fossem amigos e correligionários no PCB, na história da arquitetura brasileira ele costuma ser considerado o responsável pela ruptura com a geração dos criadores de Brasília (Niemeyer e Lucio Costa), chamada por alguns de escola carioca. “Artigas passa a adotar uma técnica produtiva que espelha sua concepção de país e projeta outra imagem da identidade moderna do Brasil”, diz Renato Anelli, professor do IAU-USP. “Em relação à obra de Niemeyer, Artigas radicaliza a estrutura, tornando mais claros os processos de projeto e construção. Ele explora os espaços abertos, interpretando a questão social por meio de uma arquitetura sem barreiras, sem portas, mas não é tão tentado à forma livre e algo exibicionista da ‘escola carioca’.”

Se Anelli vê nessas características da arquitetura de Artigas uma tentativa de “antecipar uma sociedade de plena liberdade”, de acordo com suas crenças políticas, a pesquisa publicada por Medrano e Recamán interpreta os projetos residenciais do arquiteto (e mesmo o prédio da FAU) como expressões do descompasso entre esse ideal de “plena liberdade” em relação a uma São Paulo que crescia sob o controle dos interesses do mercado e seus esquemas de segregação. Por isso, ele e Recamán veem nos projetos de Artigas edifícios voltados para o interior, nos quais, aí sim, se manifesta a utopia da convivência irrestrita. “Essas construções aceitam a condição de isolamento de seus lotes e idealizam funções libertárias em relação à cidade do capital”, diz Medrano. “Isso não faria sentido hoje.”

Trocas sociais

Para o pesquisador, São Paulo busca atualmente se aproximar de valores que são inerentes às cidades, como a possibilidade de convívio e trocas sociais em seus espaços públicos e livres. As preocupações do arquiteto, no entanto, continuam atuais e podem ser resumidas a “colocar a arquitetura em função de certas expectativas políticas e sociais”, como uma disciplina complexa que necessita de métodos e teorias, como ambicionava Artigas. Medrano lembra que as questões em evidência nas cidades em que Artigas quis interferir continuam as mesmas e não resolvidas: habitação social, convívio e segregação, áreas verdes, mobilidade.

Embora nem de longe seja tão conhecido internacionalmente quanto Niemeyer, Artigas, ao contrário do primeiro, criou uma escola de arquitetura verdadeira, que hoje, atualizada, se encontra na terceira ou quarta geração, de acordo com Medrano. Além de “paulista”, essa escola é também chamada de brutalista ou artiguista, todas denominações com defensores e críticos. Nos últimos dois anos, exposições internacionais em locais como o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York e a Bienal de Veneza, destacaram a obra de Artigas. Anelli ressalta, no entanto, que esse interesse só se deu graças à projeção da obra de um discípulo, Paulo Mendes da Rocha.

Concreto sem ornamentos

A classificação “brutalismo” se refere a uma escola, não só arquitetônica, presente no mundo todo, e sua característica mais evidente é o uso do concreto armado, em geral sem revestimento, e de linhas essenciais, sem ornamentos. Artigas é conhecido por ter suavizado essas características pelo uso da cor, por exemplo. Em pesquisa que realizou recentemente, Anelli comparou a obra de Artigas à de arquitetos brutalistas estrangeiros e concluiu que, se sua visão programática de sociedade encontra muitos paralelos com a da escola no exterior, a evolução de suas obras “se deu com raízes próprias”. E há uma diferença básica: Artigas trabalhava com a continuidade dos espaços, e os brutalistas, com a fragmentação.

No Brasil, o brutalismo partiu de hipóteses progressistas preocupadas com a coletividade e acabou designando toda a arquitetura em concreto armado aparente cada vez mais distante dos ideais iniciais e voltada para própria forma das estruturas, segundo Contier. Ele observa que a estética, ironicamente, foi incorporada pelo regime militar para obras públicas, entre outras razões, por representar, ao menos na teoria, uma construção mais austera, barata e de pouca manutenção que, mesmo assim, ostentava alguma monumentalidade, o que contribuiu para inverter o sentido original da escola artiguista. O próprio arquiteto, embora impedido de dar aulas pelo regime, assinou vários projetos de obras públicas durante a ditadura militar.

Para além das questões arquitetônicas e dos estudos acadêmicos, das pessoas que conviveram com Artigas, responsáveis tanto pela exposição quanto pelo filme biográfico, surge a figura de um arquiteto-educador que nunca abriu mão de estar presente em suas obras, nas salas de aula, no Instituto dos Arquitetos e nas casas que construiu para sua família. Laura Artigas, que tinha 4 anos quando o avô morreu e não se lembra de seus contatos com ele, considera o documentário que dirigiu “uma pós-graduação afetiva”. “Os depoimentos que colhemos mostram uma mente muito inquieta, que fazia com que as pessoas pensassem coisas que nunca tinham pensado”, diz. “Conseguir colocar em prática alguma coisa em que ele acreditava, a força do convívio, é uma conquista muito interessante que o filme revela.”