A poesia e Andréia Carvalho
Andréia Carvalho é poeta curitibana. Atua como editora de multimídia da Revista Zunái e idealizou o Coletivo Marianas.
Publicado 31/07/2015 16:58 | Editado 13/12/2019 03:30
Autora dos livros de poesia "A cortesã do infinito transparente" (2011), "Camafeu Escarlate" (2012) e "Grimório de Gavita" (2014), publicados pela Editora Lumme (SP).
Letras Vermelhas traz esta semana uma série de poesias de Andréia, leia na íntegra:
*Strigiforme
(para Alexandra Kollontai)
tenho uma fábrica agora,
mãe de Misha
opero um imenso canhão
de laser
na colmeia sou formiga
com olhos de besouro
no jato preciso da luz
cremando a fogueira
vermelha
furo o escuro, fio de magma
cuspo labaredas e as engulo
sou tua dama-dragão,
mãe de Misha
analiso açúcares, mas os evito
no estômago operário
nem o sal salpico pela cozinha
o cozinheiro o faz por mim
magista que é
com o esmalte riscado respiro o álcool
isopropílico
mergulhando na poça catapulta
as peças dos dedos
automáticos
ressuscitando em anéis
de parafuso
minha ourivesaria
minha mobília de fina decoração
ventríloqua na vitrine
sou teu carvoeiro exausto,
mãe de Misha
minando ponteiros pela cromatografia
dos vegetais
e me sinto bem: mocho na floresta,
com salário de caçador
na selva do solo
de pêlos eriçados
gráficos
*amazona flácida
meu unicórnio: faço o que quiser com ele.
eu o planto na dicção dos lamentos
faço de suas patas delicadas
meu órgão de barbárie
pisoteando o pasto como um bode
expiatório
eu o lembro nos tios, os 3
eu o lembro no pai, o primeiro
no doentio noel, no albino professor de linguística
e no frade das primeiras descobertas escatológicas,
nos ameaçando com a torre dos sinos
penso-o em são sebastião
pingando suas cachoeiras corpóreas
no mar de dedaleiras
todos ósseos e escapando pela fronte dos moluscos
e, rainha de uma noite fálica
flecha de pequenas alturas
com a agulha de morfina
no eixo da musculatura lisa
enfio o chifre da iluminura
no coração dos reis
não é o amigo imaginário
que me incita
é o diabo
o pobre-diabo
sem crina, sem cauda
sem caduceu
apenas um crime ereto na projeção do crânio
partido
cavalgando a mágica proibida
de um bestiário
empoeirado
*clair de lune
as letras mais femininas foram talhadas pelo homem pré-micênico
preso dentro do labirinto que ele mesmo levantou
no levante lento do sílex afiado sobre a pedra tumular
onde via a carne contraditória de uma deusa opulenta
& insensível
metáfora de um anjo assexuado, porém fértil
como um rio que apenas exige oferendas
pelas suas curvas
mas a água-cobra
será favorável mapear seus cruzeiros
dandinar os engrimanços com os dardos
& esgrimas das lamparinas hipnóticas
(nano-garras dentro das lantejoulas)
fazê-la astarte de terracota em dicionário sumério
súmula e pústula de um escriba astronauta
para aplacar a mutante ofensa
das iconografias mórbidas
& mudas
a mulher-cria
e se move pelas criaturas
cheias & minguantes
*a tumba constelada
a letargia dos códigos sucumbe sagrada
em alguma região onde o silêncio seria soterrado
com o adágio aos quartos sonâmbulos
cornijas, fustes, consolo glandular,
quanto do hemisfério boreal levaria?
a quantos ainda cantaria o verso na lápide?
coveiros do firmamento, choupana invernal, silvo do poente,
ostentem minha cintura com ornamentos polinizados
e um esmalte rosa como a fibra da aurora
matizando os ossos
choro de vértices
pela permanência de nossa memória
honrarei teus nomes
pela gravidez perpétua
da metempsicose
a noite irmã,
madressilva madrecita,
é o vestido de negro cetim suspenso,
adorno ilusório para as notas ciganas
que sopram
o sono vermelho dos gatos
pelos tetos,
aquelas árias que primeiro sobem a alturas
de nimbos
e depois se entortam
pelos bueiros da cidade,
espalhando aos fossos infernais
todos os segredos celestes
sequestrados das torres de marfim:
meus missais,
meus broquéis,
meus cadáveres delicados,
sempre em festa profana
de prismas.
*da tumba ao útero (fauna, flora & febre)
a terra me lembra
a pele de todos os bichos
com que me aqueci
fantasiando o calor
do músculo liso
pelos azulejos anestesiados
com olhos de vidro, com olhos de botão,
com olhos nos pratos
o lobo-guará, olfato dourado
seu canto tribal dentro das unhas
e gônadas
a coruja branca, enfeitiçada de premonições
sua previdência noturna pelo arvoredo
da respiração
o gato-mourisco na sola dos pés
roendo pedregulhos e mastros
malabaristas
na terra onde estamos
lacrados
todos alados féretros
as peles e os ossos
em simétrica convulsão
migratória
na fornalha dos primeiros dias
no assopro de vitrais pela catedral
transpirada
suaviza-me a marca destas expressões
de florestas & furnas & lagoas
os uivos que soam em sinos & gemidos
na fabulosa nostalgia
de um astucioso artesão
com vértebras
esta oficina diabólica é espelhada
um prisma químico
no metabolismo das dedaleiras
deixo-me moldar
junto com todos
os bichos & ervas & germes
que me retornarão
quelícera de submundos
um célebre sem crias, sem carmas
sem conhecimento
um ciclope rosnando
pelo celibato de gaia
expulso & acolhido, viajante
*o sorriso alérgico de Lili(th)
se me ofertam lírios
mostro os dentes de urtiga
lírios são parnasianos e psicóticos
e babam demais
são camisas-de-força
na saliva oscilatória da contração
dos vales
flores de martírio na mucosa de fórceps
com hálito inseticida
em defesa, iluminista androceu
no reduto do pólen,
me perpetuo
emanação do terrível cosmos
florata sorridente
urtiga, urtiga, teu rosto não se turva no giro demente do sol
teu rosto é um mocho de vestes metálicas
sondando a fria goela
da lua
espinhenta
sou teu trêmulo aprendiz,
embora dandelion
a melancolia universal não nos cai bem
quando chora cintilada
escapo, liricamente
em naipes de espadas,
os lírios: pisoteados.
*cheopis
matricária real na autópsia dos dias santos (todos)
a moça suástica
não esconde a máscara de camazuleno
camaleônica
em pegadas de caduceu
desfila pelo xadrez dos cancros im-pacientes
(um napoleão marchando inócuo em corredores de hospital)
com bolsos vazios
(longe da peste)
o cordão nervoso aporta
na ilha dos piratas
seus roedores
em fila indiana
saltam aromáticos
(especiarias anestésicas, sorrisos espasmódicos)
mas há uma mentira silábica
no furo do longo casaco branco:
se imploram ópios, concede,
pensando em chávenas solares de camomila
entornadas
(que poderiam sepultar todos os morgues, caso não gritassem tanto pelas argamassas narcóticas de morfeu)
*maria da pena
ela rogou ao mar
o touro branco
como a neve
a cor de seu desmaio
pelas fracas porcelanas
um troféu de reinado
para lembrar aos homens
que costurava ilhas
dispersas
e domava com rigor e charme
caótico
os olhos náufragos
sobre sua pele
coletora
quando surge na avenida
willendorf
maquiada de ocre vermelho
vestida com couro curtido
desafia a vênus
anadiômene
e sussurram mitologias:
cuidado, a minotaura.
*incompleta hélix
na semiosfera da mandrágora óptica
intaglio a natimorfa
sonolenta antífona sóbria
sardônica a polegada
de um escárnio que nos adorna
encarno-a em jaspe
de camafeu
e pelo escarro escancarado
renasce pastora morna
nematoda helicoidada
na testa de androceus