Em artigo, Ricardo Moreno fala sobre a tentativa de golpe

 
A República dos golpes, ou o amadurecimento das instituições, para emancipação do povo?

A República brasileira foi instalada no ano de 1889, por meio de um golpe. Um dia após a instalação da República, Aristides Lobo escreveu – “o povo assistiu bestializado a República se implantar”[2] – ou seja, longe de ter sido resultado de qualquer tipo de clamor popular, aquela foi uma ação feita por cima, e sem a participação dos trabalhadores. E o novo regime de governo não trouxe estabilidade: as primeiras décadas foram marcadas por constantes crises políticas, pela ausência de fortes instituições nacionais, e uma grande fragmentação regional.

Em 1930 uma nova fase da História republicana foi estabelecida, por meio de um golpe. A revolução burguesa incompleta[3] que levou Getúlio Vargas ao poder foi também um arranjo de setores da elite, e mais uma vez não contou com a participação do povo. Esta nova fase trouxe a centralização, o fortalecimento da União, bem como emergiu um projeto burguês, que estimulou a urbanização e a industrialização.

Assim se desenvolveu o capitalismo no Brasil, tendo o Estado como agente fundamental de financiamento, seja pela adoção de uma política de substituição de importações, seja pela construção das condições necessárias para o desenvolvimento da indústria de base. Em 1935 a relação política endureceu, e foi marcada especialmente pela perseguição aos comunistas e forte concentração de poder no executivo. Dois anos depois a ditadura foi formalizada, com a instalação do chamado Estado Novo.

A ditadura Vargas de 1937 marcou mais uma vez a nossa trajetória, interrompida por um golpe organizado por setores da elite e de caráter antipovo. A própria superação do Estado Novo se deu, também, por um golpe: o presidente, simpático ao nazi-fascismo que havia sido derrotado, foi deposto pelos militares em 1945.

Mas o regime democrático não durou por muito tempo. Para as eleições livres de 1945, os comunistas do Brasil disputaram o pleito com candidato próprio, Iedo Fiuza, chegando a obter surpreendentes 10% dos votos válidos, e elegendo 15 Deputados Federais e um Senador, tornando-se uma força influente na constituinte de 1946. Porém, já em 1947 tivemos um golpe “calça curta”. Sob alegação da guerra fria os comunistas tiveram seu registro cassado, foi decretada a intervenção em vários sindicatos, fechou-se a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil, criada pelo movimento sindical em setembro de 1946 e não reconhecida oficialmente pelo governo.

O PCB apelou para o Judiciário, requerendo habeas corpus para o livre funcionamento das suas sedes, mas o pedido foi negado. Em seguida, os comunistas do Brasil tentaram organizar uma nova agremiação partidária, o Partido Popular Progressista (PPP). O TSE também negou o registro para o PPP, e a exclusão dos comunistas do sistema político-partidário culminou em janeiro de 1948, com a cassação dos mandatos de todos os seus parlamentares. Além de perseguir os comunistas, o governo Dutra, totalmente alinhado com os Estados Unidos, em outubro de 1947, rompeu as relações diplomáticas do Brasil com a União Soviética[4].

Em 1950 Vargas retorna a Presidência, desta vez eleito, sendo inclusive apoiado por setores progressistas e pelo próprio Partido Comunista, em um contexto de defesa dos interesses nacionais e em plena campanha pela consolidação do monopólio estatal do petróleo. Em 1954 Vargas se suicidou, meio a forte pressão golpista, marcada pelo uso da imprensa como instrumento de manipulação e orquestração da pressão popular, em uma ação propagandista que entrou para a História conhecida como lacerdismo, em alusão ao líder conservador Carlos Lacerda[5].

Em 1961, a sanha golpista da República brasileira faria mais uma vítima. Eleito por uma coligação de direita, Jânio Quadros iniciou um governo que desagradou, tanto os conservadores, quanto não buscou conquistar a confiança da esquerda. O presidente condecorou Che Guevara no dia 19 de agosto de 1961, com a Ordem do Cruzeiro do Sul, em agradecimento ao atendimento, ao seu apelo, de liberdade a mais de vinte sacerdotes presos em Cuba que estavam condenados ao fuzilamento. Jânio fez esse pedido de clemência a Guevara por solicitação de dom Armando Lombardi, Núncio Apostólico no Brasil, que o solicitou em nome do Vaticano[6].

Defendeu a política de autodeterminação dos povos, e condenou a invasão da Baía dos Porcos; encaminhou ao Congresso medidas antitruste; reforma agrária; regulamentação para remessa de royalties do petróleo. Sofreu a já conhecida pressão golpista, tendo a imprensa e o Carlos Lacerda como principais porta-vozes do descontentamento da direita, que se sentia traída. No dia 21 de agosto de 1961 Jânio Quadros assinou uma resolução que anulava as autorizações ilegais outorgadas a favor da empresa Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os ministros militares pressionaram Quadros a renunciar.

A renúncia de Jânio Quadros aprofundou a crise política, os militares se dividiram quanto a dar posse ao vice-presidente, que se encontrava em missão oficial na China. Acusado de possuir relações com o comunismo internacional, João Goulart só veio a assumir a faixa presidencial no dia sete de setembro, tendo seus poderes reduzidos com a adoção do parlamentarismo, o que representava uma espécie de golpe constitucional dado pelos conservadores, que restringia as ações do poder executivo. O insucesso do parlamentarismo acabou forçando a antecipação do plebiscito que decidiria qual sistema político seria adotado no país.

Em 1963, a população brasileira apoiou o retorno do sistema presidencialista, o que acabou dando maiores poderes para João Goulart. Com a volta do antigo sistema, o Presidente defendeu a realização de reformas de base que poderiam promover a distribuição de renda. O conjunto de ações oferecidas por João Goulart desprestigiava claramente os interesses dos grandes proprietários, o grande empresariado e as classes médias. Membros das Forças Armadas, com o respaldo das elites nacionais e o apoio estratégico norte-americano, começaram a arquitetar o golpe contra João Goulart.

Ao mesmo tempo, os grupos conservadores realizaram um grande protesto público com a realização da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Foi esse o ambiente de ofensiva, frente a um governo de medidas populares, que mais uma vez fez quebrar as regras do jogo, e implantou um regime de exceção no Brasil. Novamente, o curso dos acontecimentos era interrompido por um golpe antipovo[7].

O golpe militar de 1964 lançou o Brasil no período mais tenebroso de toda a sua História republicana. Logo nos primeiros dias uma violenta repressão atingiu os setores mais mobilizados da sociedade, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas, a Juventude Universitária Católica (JUC), e a Ação Popular (AP). Milhares de pessoas foram presas e muitas dessas torturadas. Em Recife, Gregório Bezerra foi amarrado e arrastado pelas ruas. A junta militar criou o Ato Institucional, recurso que não possuía nenhuma fundamentação jurídica, mas que foi utilizado para lançar mão dos atos de exceção.

*Publicado na edição nº 6 da Revista Dialética