Pietro Alarcón: Colômbia e a hora da paz

O recente encontro em Havana do presidente Juan Manuel Santos e o comandante em chefe das Farc-EP, Timoleón Jimenez, que estabeleceu o prazo de seis meses para finalizar as conversações que com base na agenda de diálogo para uma paz estável e duradoura foram iniciadas em novembro de 2012, é sem dúvida uma nova esperança de paz para os colombianos.

Por Pietro Alarcón*

Timochenko - Telesur

Até o presente há acordos em quatro pontos gerais importantes: a reforma agrária integral, a participação política democrática, a solução ao problema das drogas ilícitas e o mais recente, a criação do Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não-Repetição. Este último compreende, em essência, a criação da Comissão da Verdade, a proposta de anistia para aqueles que tenham cometido crimes políticos e conexos com estes e a criação da Jurisdição Especial para a Paz, constituída por juízes e tribunais especializados integrados por magistrados colombianos e estrangeiros, com competência para examinar e julgar delitos contra a humanidade.

Complementarmente deu-se autorização para iniciar os processos técnicos para o desenvolvimento pelo Estado da legislação concretizadora dos acordos e das políticas públicas sequenciais, bem como as primeiras formulações para a criação de um movimento político com participação do movimento insurgente que passaria a disputar o cenário da luta político-social colombiana.

São propostas e acordos audaciosos, que a Colômbia precisa de maneira urgente e que constituem uma conquista popular. Acordos que precisam de muita vontade política, e ainda de muita participação social para serem concretizados, para afastar de vez as correntes mais reacionárias que enxergam na guerra e no cerceamento dos espaços democráticos uma forma de deter as reformas necessárias para o desenvolvimento soberano do país.

América Latina

Vale apontar que na Colômbia, como já tem sido dito em outras oportunidades, o direito à paz é amplamente proclamado como um direito síntese, que não se limita à ausência de conflitos – estes fazem parte da dinâmica social – senão que está intimamente ligado ao reconhecimento do direito à vida, à participação política, aos direitos sociais, econômicos e culturais para os grupos mais vulneráveis da sociedade. Do que se trata é de eliminar a guerra como forma de solucioná-los.

Entretanto, o avanço dos diálogos não é apenas importante para os colombianos. Na verdade constitui um dos fatos políticos mais relevantes para a América Latina.

Com efeito, se para a Colômbia se abriu a possibilidade de uma solução concertada ao conflito social e armado, para a América Latina o sucesso dos diálogos projeta um impacto bastante positivo. Trata-se, por um lado, da geração de um novo ambiente nas relações regionais, favorável ao fortalecimento de processos de integração como a Celac e a Unasul, nas balizas de uma nova lógica de entendimento entre os Estados, no intuito de progredir a programas políticos e infraestruturais de maior cobertura, para alicerçar o desenvolvimento com base nos interesses comuns das nações da área. Mas também de uma nova condição, historicamente benéfica para a desmilitarização do continente, rejeitando as pretensões geopolíticas calcadas historicamente na presença constante de bases militares e medidas de intervenção das potências, especialmente dos Estados Unidos. Daí a necessidade de um rastreamento e acompanhamento desse processo, de seus avanços e contradições.

Brasil

Para o Brasil em particular, pautado nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, a não intervenção e a autodeterminação dos povos, o acompanhamento do processo sugere promover uma visão construtiva, de engajamento para a criação de uma zona de paz, isenta de bases militares e de cooperação para o desenvolvimento no contexto regional.

Advirta-se, em reforço a essa rejeição ao intervencionismo que, precisamente, a constante presença norte-americana na Colômbia, como diz Estrada Alvarez, “com o argumento de contribuir à derrota de uma presumível ameaça terrorista, converteu o país em uma ponta de lança dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região e uma plataforma de contenção dos processos de mudança empreendidos por governos progressistas e nacional-populares. A dinâmica do conflito chegou, inclusive, a afetar a estabilidade e a paz regional".

Nas atuais circunstâncias, vale a pena tecer algumas considerações históricas sobre esta possibilidade de paz para a Colômbia. A experiência do país demonstra que não existe saída militar ao conflito social e armado que se desenvolve desde a segunda metade do século passado e que assumiu várias formas ao longo da historia, ligadas aos níveis de confrontação de classe no campo, cujo núcleo inicial foi a maneira violenta como se determinou a propriedade sobre a terra.

Latifundiários na metade do século 20, apoiados por governos conservadores e as forças armadas, organizados em bandos paramilitares desde então dedicadas à pratica de crimes contra a humanidade, empreenderam a ampliação e conquista de novas terras despejando camponeses, intimidando famílias, obrigando ao desterro e ao banimento de grupos humanos. Em que pese a sua vulnerabilidade, os camponeses reagiram à agressão e evoluíram a formas militares de autodefesa.

Enquanto isso, a deterioração das condições de vida da população trabalhadora na cidade e no campo originou o fortalecimento dos setores sindicais, cívicos e estudantis. A estratégia estatal diante desse elevado grau de mobilização popular que determinou jornadas como greves gerais e formas de ação inéditas e de alcance nacional foi responder com um grau de repressão extrema. O país desde 1948 até 1991 esteve em estado de sítio, ainda que nos manuais e livros de história fosse comum, e especialmente no discurso internacional sedimentado na Organização dos Estados Americanos (OEA), que a Colômbia fosse considerada uma estável democracia.

Sob a ideia de uma ameaça comunista no país, os partidos políticos tradicionais criaram um regime de democracia restringida. Em lugar do reconhecimento pluripartidário instalou-se um bipartidarismo excludente, de torpe e recortada visão, sustentado pela violência interna contra qualquer forma de real oposição, de políticas públicas precárias, de escasso sentido de interesse nacional e comprometido com o capital estrangeiro.

A interação entre as formas de luta no campo e na cidade fortaleceu no primeiro desses cenários a construção de uma concepção estratégica da ação político-militar pautada a partir de então pela transformação da sociedade. Por isso, ainda que não existisse a confirmação prática das teses clássicas de uma situação revolucionaria, na Colômbia o movimento insurgente nasceu e cresceu legitimado na medida em que o Estado fechava a participação política e incrementava sua tática de repressão social.

Nesse contexto, o drama humanitário tornou-se inocultável. De acordo com o Pnud (Programa da ONU para o Desenvolvimento), na Colômbia foram assassinados desde 1984 mais de 2.800 lideranças sindicais, com um percentual de 100 mortes por ano; de acordo com o Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) o pais está entre os cinco com maior índice de deslocamento forçado, com mais de cinco milhões de refugiados internos.

União Patriótica

Em que pese outras experiências, a tentativa mais importante de atingir a paz deu-se em 1983 quando no governo de Betancur a guerrilha das Farc firmou um acordo e no bojo desse processo milhares de homens e mulheres de diversas organizações políticas e sociais conformaram a União Patriótica (UP). Essa organização emergiu com um profundo arraigo popular e na sua primeira oportunidade eleitoral conquistou 14 senadores, mais de uma centena de deputados e um grosso número de prefeituras e vereanças em diversos municípios do país.

Entretanto, a nova organização sofreu a agressão sistemática dos inimigos da paz, associações econômicas, transnacionais do agronegócio, um segmento dominante das Forças Armadas com o apoio logístico dos Estados Unidos e de Israel. Num período de oito anos mais de 5 mil membros da organização foram assassinados, desaparecidos ou obrigados ao exílio.

Hoje, após uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconheceu o genocídio praticado contra os membros da sua organização, a UP ressurgiu e se apresenta no contexto eleitoral colombiano novamente, ao lado de outras forças que propõem uma mudança transcendental na condução do Estado e da política no país.

A partir daquela época e nessas condições, a luta pela paz vinculou-se à conquista de reformas econômicas e sociais, à abertura à democracia e dos direitos humanos. Não se procura qualquer paz, mas uma paz com um forte conteúdo político-social, transformador, que se tornou uma esperança de modificações profundas para superar o atraso e a marginalidade, e que no plano externo está firmemente posicionada contra todo tipo de impérios e ingerências militares contemporâneas.

No entanto, desde a década de 80, as oligarquias temerosas da paz e do grau de organização social fizeram produtivos acordos com o capital financeiro internacional, tanto aquele que circula na banca legalizada como aquele da lucratividade fácil do narcotráfico. Exércitos de paramilitares financiados pelos narcos foram fortalecidos ao mesmo tempo em que uma camada de novos ricos nasceu ligada ao grande negócio e com aspirações políticas.

Estados Unidos

Na época, o patético papel do embaixador dos Estados Unidos L.Tambs, foi determinante para a formulação de duas teses que fecharam as possibilidades da paz. Por um lado, sustentando que na Colômbia o movimento insurgente era uma mistura de narcotráfico com terrorismo. Retirava, assim, qualquer possibilidade de interlocução com as guerrilhas, posto que a acusação por crimes comuns e não por crimes políticos concitava a comunidade internacional a uma cruzada intervencionista no país. Por outro lado, expunha que na Colômbia caminhava um processo subversivo em cujas filas estavam as lideranças sociais, conforme se plasmava nos Documentos de Santa Fé 1 e 2 elaborados pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos.

Prontamente este discurso se alastrou e os movimentos sociais e políticos passaram a ser criminalizados com intensidade através de legislações de exceção desconhecedoras das garantias processuais, ao passo que se iniciam as montagens judiciais tendentes a colocar as lideranças sociais na ilegalidade.

Esses setores dominantes na Colômbia logo se dividiriam quanto aos rumos para conter o avanço popular. Ainda que sem se diferenciar, no essencial reproduziram e mantêm fórmulas de ação conjunturalmente mais atreladas a um ou outro setor do capital nacional e internacional.

Precisamente essas contradições explicam as posturas militaristas do ex-presidente Uribe, que inspirado na doutrina da guerra preventiva de G. Bush, sustentou durante seu governo a tese da segurança democrática, colocando, numa visão deformadora da realidade, que não havia conflito social e armado na Colômbia, senão uma democracia ameaçada pelo terrorismo. Para Uribe e o setor que representa não há paz possível.

Por sua vez, o governo de Santos, embora seja justo reconhecer seu papel nesta hora pela paz, coloca-se no seu papel, esperado e lógico desde sua visão, de estabelecer uma paz recortada e com o mínimo de concessões possíveis. Santos aposta numa perspectiva apoiada conjunturalmente desde os Estados Unidos, que tem um representante permanente em Havana acompanhando o processo, a partir dos TLCs – Tratados de Livre Comércio – e um rol na Aliança Pacífica que lhe permita colocar a Colômbia como país emergente. No plano econômico e político um contraponto de peso a outros Estados da região. Ainda assim, essa paz proposta por Santos, que implica cooptação e integração das formas de resistência ás chamadas vias institucionais de tratamento da conflituosa situação do país, tem inimigos.

Os setores mais atrasados do militarismo e da direita uribista, negociadores dos orçamentos para a guerra, e com forte influência em alguns meios de comunicação, bem como as corporações mineiro-energéticas, se opõem desde o começo ao processo e insistem numa solução militar, incapazes de ceder seus domínios sobre a terra e o território.

Por isso, a agenda dos acordos de Havana constitui o começo do fim do conflito militar, colhendo aspirações populares e sociais de alcance nacional. E ainda há que prosseguir na perspectiva de um acordo com outros setores insurgentes como o Exército de Libertação Nacional (ELN).

Contudo, é claro que o possível acordo presente não vai esgotar ou finalizar a confrontação entre os setores que lutam pela condução do Estado. O que se pretende é gerar regras do jogo que permitam a tolerância e a pluralidade para que seja possível fazer política com garantias, sem a ameaça da morte, conquistando cenários de participação para uma democracia política e social avançada.

Por isso não há trégua na luta social, como o demonstram as mais recentes Jornadas Nacionais de Indignação Camponesa, Étnica e Popular, dinamizadas pela Cúpula Nacional Agrária durante a primeira semana de setembro. A conquista do acordo de paz demonstra uma mudança na correlação de forças em favor da paz, mas que todavia deve continuar a se construir nas ruas, passo a passo, ampliando e consolidando as mudanças com a participação dos setores sociais.

Os acordos são uma notícia importante, mas é preciso envolver internacionalmente o processo, fomentando a concretização dos pontos mais nevrálgicos e promovendo a Assembleia Nacional Constituinte que os referende. A Colômbia se prepara para uma nova chance, consciente dos avanços e dos perigos, sabendo que a saída é a mobilização popular na perspectiva de um novo país.

* Professor Doutor da PUC de São Paulo, cursos de Direito e Relações Internacionais