A safra demora, mas a colheita vinga

Água boa devolvida ao pote, o Recife nos refez. Feito moringa gorda de barro, límpida, também estou refeita. Um a um, eles foram chegando. Um a um, os chamei pelo nome. Alberto Vinícius, Alanir, Carlos Alberto, Chico de Assis, Marcelo Mário de Melo, Luciano Siqueira, Calixtrato, Emilson, Adeildo e painho. Dez dos ex-presos políticos da foto da capa do Dossiê Itamaracá que ainda estão vivos estiveram por lá.
 

A safra demora, mas a colheita vinga - Ana Siqueira

Joana Côrtes (*)

Uns deixaram suas casas na cidade, outros debandaram de João Pessoa, todos subiram as escadas da livraria Cultura do Paço da Alfândega, no Recife Antigo, e foram ao nosso encontro.

E que encontro! Como que saído de um sonho. De uma história em quadrinhos. De um filme. Todos ali, presentes.

Uma a uma, elas apareceram. Uma a uma, as abracei forte, segurando-as no meu peito para sempre. Rejane, Carminha, Sumaya, Ceres, Luci, Nevinha, mainha, os nomes das mulheres que por tantas vezes passaram por meus olhos durante a pesquisa nos 97 relatórios de visita do Dops, no Arquivo Público de Pernambuco, as mesminhas que visitaram com impetuosa solidariedade e persistência, passando por revistas vexatórias, para levar acalanto e força a seus homens, irmãos e filhos durante os anos de Itamaracá. Essas mulheres, elas próprias, vivinhas, ali, na minha frente, puta que pariu, como é bom encontrá-las vivas e estar viva para poder agradecê-las e viver isso.

Os ombros desconhecidos e anônimos frevando no meu queixo em cada laço, cumprimento, abraço. A generosidade pernambucana, ciranda atômica, pastoril profano. A luz estourada desse povo, desse lugar, onde meus dois irmãos foram gerados, onde meus pais viveram a melhor história de amor e de dor que eles poderiam viver, o aprendizado e a força do coletivo contra a ditadura, liberdade para não morrer.

Os nossos, do Recife. Todos profundamente lá. Aonde guardamos os melhores amigos, Luci e Luciano, do baque virado, cravo envenenado de muito amor solidário na boca do coração. Eles que são dos tempos da prisão. Suas mães que deram abrigo a minha mãe. Aos meus irmãos. Compartilhamos casa, comida, gargalho, sol e sal. Crescemos, seus filhos, como amigos. Agora são os filhos dos seus filhos, nossos também, vindoura geração, que nos fazem chorar de emoção, Pedro, 16 anos, pedindo a palavra no debate na livraria Cultura, para agradecer a liberdade dos dias de hoje a essa outra antiga geração.

A safra demora, mas a colheita vinga.

Levo do Recife, Pernambuco inteiro. A fronteira entre o Cabo e a Charneca, onde meus pais conviveram na clandestinidade. Levo os fiteiros de cada esquina. A morrinha dos arquivos onde andei enterrada nos anos de pesquisa. Levo o apartamento no Campo Grande, que por muito tempo foi nossa casa por aqui, e o da rua da União, meu abrigo e ninho nos anos de pesquisa do Dossiê. Levo o sotaque matreiro entre os dentes, a missão cumprida, a solidária alegria e a generosa acolhida dessa gente. Levo os lambes laranjas colados em qualquer vão, a mobilizadora força desse chão, o sol rasgando a alma.

Levo a moringa cheia, transbordando, de força e coragem. Bebi, bebo, beberemos dela por muito tempo. Da noite que lançamos o Dossiê por aqui, levo a vibração dessa gente, o calor todo do Recife, cada um dos apertos, entre as dobras das minhas mãos.

(*) Joana Côrtes é jornalista, historiada e autora do livro Dossiê Itamaracá: Cotidiano e resistência dos presos políticos da Penitenciária Barreto Campelo (Pernambuco 1973-1979)", lançado terça-feira, no Recife. O texto acima foi publicado pela jornalista em sua página no Facebook.