Bernie Sanders: caminhar sobre os ombros do gigante adormecido

É difícil para Sanders se tornar o candidato democrata. Mas o fenômeno 'Bernie' deve ser compreendido dentro de uma situação que começou a ser formar há quatro anos por Occupy Wall Street e "a mudança de conversa" que esse movimento gerou.

Por Susana Draper e Vicente Rubio-Pueyo (*)

Sanders

A imagem recorrente na política americana é o "gigante adormecido": um grupo social, uma massa demográfica de eleitores que de repente desperta para tornar-se fator crucial em uma eleição. Ao longo de décadas de curso político independente, não sendo restrito a democratas ou a republicanos (como prefeito de Burlington, Vermont capital e depois como senador desse estado no Congresso), Bernie Sanders sempre foi um estranho, uma espécie de profeta solitário no deserto de hegemonia neoliberal.

Quando Sanders lançou sua candidatura para as primárias democratas, em maio de 2015, a proposta foi recebida com paternalismo (quando não diretamente indiferença) pela imprensa. Meses mais tarde, Sanders pode vender em Iowa e New Hampshire, primeiros estados a realizarem suas primárias. Como Sanders poderia ter aberto este desafio sem precedentes, até então impensável, a Hillary Clinton e à máquina do Partido Democrata? Além dos méritos incontestáveis de sua campanha e de um caminho honesto e consistente, a situação deve ser entendida como a possibilidade de uma articulação de fragmentos e trajetórias históricas. como nos têm mostrado a série de momentos cruciais na última década, desde Occupy Wall Street.

Através de suas referências explícitas ao New Deal de Roosevelt , o "socialismo democrático" de Sanders é basicamente a reintrodução de termos como "justiça econômica" e "redistribuição da riqueza", ausentes durante décadas no discurso público americano. Em outras palavras, a recuperação de um estado de bem-estar, principalmente na saúde, na educação e em direito do trabalho. O que é interessante aqui não é apenas sobre as propostas específicas de Sanders, mas a forma como estão ligadas à paisagem social e política nos últimos anos. Assim, a reconstrução do sistema de saúde pública reflete a insatisfação com o “Obamacare”. A proposta de um ensino gratuito nas universidades públicas confronta o problema da bolha da dívida estudantil astronômica que o Occupy colocou em debate. Aumento do salário mínimo para US$ 15/hora refere-se à campanha "Fight for 15" e a onda de novas sindicalizações em setores tradicionalmente mal organizados, como as cadeias de trabalhadores "fast food" ou corporações como Walmart.

Ao contrário de Obama, a campanha de Sanders não é centrada em um candidato carismático, mas neste programa e na invocação de uma "revolução democrática" consistente, em primeiro lugar, na rejeição frontal de "Super PACS" ( sistemas empresariais de financiamento eleitoral) mediante uma campanha financiada por mais de três milhões de doações individuais (contribuição média de US$ 30) . Ao ficar fora do processo em que Wall Street, seus bilionários e empresas investem bilhões nos candidatos para controlar o sistema de decisões políticas, Sanders explicita de forma direta como a política é dirigida a partir do sistema financeiro e os interesses econômicos de 1%.

Com uma grande surpresa para o establisment, ele conseguiu que sua campanha fosse 100% financiada pelos eleitores que apóiam suas idéias e programa, mostrando que é possível uma campanha sem "super Pac" ou milionários. "Estamos fazendo história", afirmou seu gerente de campanha Jeff Weaver. Este gesto básico tão incomum está no centro de sua plataforma: a separaração entre vida política e o instrumento financeiro que a mantém cooptada. O eixo é a distinção, feita pela Ocupe Wall Street, entre os 99% e acumulação de riqueza no 1%. Com isso, surgiu uma espécie de redefinição da política que contraria o discurso de mera gestão e administração; Sanders insiste em uma "revolução democrática" capaz de imaginar um outro futuro.

É o único candidato que  pôs em seu discurso a questão da redistribuição de riqueza e justiça econômica, que nos Estados Unidos é inseparável de uma justiça racial e de um sério desmantelamento do racismo sistêmico. Assim, a invocação de uma "revolução democrática" implica num horizonte mais profundo de articulação transversal de alguns aspectos fundamentais da cultura política americana, como a gestão tecnocrática e a demografia de mercado de serviços. Compõe uma espécie de reeducação política, e isto é criticado pela campanha de Hillary e toda a máquina midiática. Estas críticas mostram a natureza profundamente apolítica da tecnocracia, e atacam Sanders por não cumprir as suas "promessas". Na outra ponta, ele apela a uma mobilização popular como condição para a realização destes objetivos, que não são promessas e sim propostas que ampliam o debate político; tanto que a própria Clinton foi forçada a adaptar-se e mostrar a sua versão mais progressista.

Será extraordinariamente difícil para Sanders tornar-se o candidato democrata. Entretanto, o fenômeno Bernie deve ser entendido dentro de uma abertura feita há quatro anos pelo Occupy e a "mudança a conversa" que o movimento produziu por questões que foram pautadas tais como a desigualdade econômica, e uma manifesta distância do establishment político. De acordo com a indicação de vários estudos, devido à falta de perspectivas de emprego, dívida e insegurança, o ambiente cultural e ideológica da chamada "geração do milênio" aponta para um claro abandono dos temores herdados do macarthismo, dando lugar a pontos de vista políticos muito mais aberto. Além de Iowa e New Hampshire, e além da eleição de novembro, podemos estar frente a uma mudança tectônica muito mais profunda na sociedade americana, e continuará a ter efeitos nos próximos anos. Talvez, quem sabe, o despertar de um gigante adormecido.

*Susana Draper é professora da Universidade de Princeton e Vicente Rubio-Pueyo é professor da Universidade de Fordham