Contos da Maré: cruzamento entre lenda e realidade

Costumo dizer que uma das principais forças do curta-metragem não está em sua capacidade de concisão ou síntese, e sim na articulação dos elementos em seu enredo. Um curta não precisa ser conciso, e sim muito bem articulado. Claro que isso vale para qualquer filme de qualquer duração, mas no curta, a relação com o tempo, movimento e essa articulação se torna mais primordial.

Por William Hinestrosa, no Outras Palavras

contos da maré - Divulgação

Pois bem, comecemos com anatomia. Para a movimentação do corpo humano há o sistema articular, que faz parte das junções dos diversos ossos e é dividido em três grupos de articulações (fibrosas, cartilagíneas e sinoviais), dependendo da estrutura e mobilidade dessas junções. O que me interessa aqui são as articulações sinoviais, responsáveis pelos movimentos amplos do nosso corpo, e que por sua vez são divididas em três tipos conforme a quantidades de eixos (vertical, horizontal e rotacional) aos quais elas podem articular: 1 eixo (ex: cotovelo), 2 eixos (ex: punho) e 3 eixos (ex: ombro).

Refletindo sobre a amplitude do movimento de uma articulação, podemos pensar o quanto ela precisa ser eficiente se num curto espaço de tempo ela conseguir dar conta de uma movimentação nos seus mais variados eixos. Pense no ombro de um(a) atacante de voleibol de alto nível e a eficiência na articulação de seu ombro.

Como podemos agregar tudo isso à força de um curta-metragem?

Articulações, eixos, tempo e eficiência. Cinema é movimento, e a edição dita justamente a eficiência da articulação das imagens ao longo de toda a duração de um filme e oferece um ritmo à junção dessas imagens. Os eixos em que isso opera consistem no próprio percurso do tempo, no roteiro do filme, nas composições imagéticas de cada cena e na sensibilidade da sua proposta.

É a articulação desses eixos na elaboração de um curta-metragem que destaco no filme Contos da Maré, de Douglas Soares (RJ). Assim como nosso corpo humano, enxergo nessa obra também um corpo orgânico cujas articulações, em especial aquelas efetuadas no patamar do sensível e nas relações com os afetos, são eficientes primordialmente pelas escolhas no seu roteiro.

Do início das coisas até as coisas de hoje, muitas coisas podem ser lembradas, mas é com um afinado recorte no trabalho de memória que Douglas Soares nos trouxe um interessante filme familiar. Na melhor tradição do curta-metragem, Contos da Maré acerta em suas escolhas de recorte do enredo. De lendas urbanas recortou para lendas urbanas da favela onde o diretor frequentou quando criança, e das pessoas dessa favela que conviveram com essas lendas recortou para as pessoas do seu núcleo familiar materno residente nessa favela.

Recorte preciso que serviu de alicerce para uma articulação também afinada entre memória, afetos e imaginários. Com isso, temos nesse curta uma amplitude para reflexões sobre transformações e sobrevivências. Contos da Maré, por meio do seu núcleo afetivo de memórias de família, nos faz pensar como as transformações urbanas por vezes deixam escapar aspectos culturais de um imaginário que oferece riqueza a uma identidade própria de um espaço, mas que ao meu ver sobrevivem, como veremos a seguir.

Sem a utilização do recurso de imagens de arquivo, acessamos o passado da comunidade apenas pela oralidade dos familiares de Douglas, e mesmo assim é um passado recortado, focado apenas nas lendas do lobisomem, da cobra e do porco, que preencheu o imaginário da população local há mais de trinta anos. Por outro lado, verificamos ao longo de todo o filme imagens atuais da favela da Maré, seu cotidiano, sua gente. O que essas imagens nos dizem?

A um primeiro momento, podemos considerá-las ilustrativas de uma realidade, ou seja, uma aproximação do real, mas particularmente as considero como um elemento provocador para o nosso próprio imaginário, como se a todo momento precisássemos forçar o pensamento de como aquele espaço, tão urbano e próprio de uma grande metrópole, foi o palco de todas aquelas histórias que acessamos por meio dos depoimentos.

Em um contraponto a essas imagens da realidade temos as máscaras, elemento surreal usado pelos familiares do diretor em algumas cenas. A máscara é uma ferramenta cênica importante na dramaturgia, ao trazê-la para uma narrativa documental, temos uma outra articulação de representação que novamente é um elemento provocador do imaginário. As lendas narradas no filme se referem todas a mutações que originaram seres híbridos com formas humanas e animais, anatomias até o momento impossíveis.

Desde o minotauro, ou até antes, esses seres híbridos despertam o imaginário, são imagens que vagueiam pelos mais diversos cantos do planeta representando por si as suas sobrevivências. O tio Anísio comenta que “as coisas não existem mais porque as pessoas pararam de acreditar”, considero essa passagem um ponto nevrálgico do enredo, pois se ele estivesse certo, o próprio filme não existiria. Enxergo que a questão central é o quanto esse imaginário sobrevive em distintas manifestações culturais, como o curta realizado por seu sobrinho Douglas.

A história da humanidade segue por meio de suas transformações constantes e também pelas suas sobrevivências culturais. Contos da Maré representa isso de uma forma lúdica e afetiva, pois ao se apropriar afetivamente da oralidade e da disposição cênica de sua família, o diretor conseguiu nos apresentar um corpo tão híbrido quanto as figuras mutantes que povoaram a maré. Temos assim articulações eficientes cujo principal movimento é ampliar nossas percepções junto ao significado dos nossos imaginários.

Por fim, uma imagem que traduz bem a força desse filme: um homem com cabeça de lobo (um lobisomem?) tocando nos teclados uma música que nos remete àquelas típicas de histórias infantis. Podemos sugerir, pela roupa, que é o avô de Douglas usando a máscara e tocando nos teclados, e que este, aparentemente, não está tocando sozinho. A sugestão é reforçada pela presença da vó do diretor, que entra em cena trazendo um agasalho ao ser híbrido nos teclados.

Assista ao curta na íntegra: